O Homem Elefante (e o elefante) como símbolo

“O Homem Elefante” estreou na Broadway no início dos anos 1980, com o músico e ator David Bowie no papel principal. A peça conta a tragédia do inglês Joseph Merrick (1862-1890), que nasceu com deformidades que fizeram dele atração de circo, bem como curiosidade científica. Por isso, ganhou o cruel apelido que dá nome à peça. Em seu segundo filme, David Lynch decidiu recuperar a história desse personagem deficiente que de fato existiu. Sabemos que na obra do cineasta norte-americano há marcas da estética surrealista e do expressionismo. No entanto, além do foco nas artes visuais e no cinema, vamos desvendar o homem elefante como símbolo e a função desse animal na mitologia.

O filme como metáfora da era vitoriana

Sobretudo uma alegoria, O Homem Elefante traz toques do surrealismo e tenta recriar a era vitoriana sob camadas de fumaça e fuligem. Também evoca o maniqueísmo, isto é, a dualidade do Bem contra o Mal própria das bases judaico-cristãs, dos contos de fadas ou das fábulas. No caso do cinema, essa oposição é bem clara no film noir ou no cinema clássico hollywoodiano, por exemplo.

A ideia de alegoria, que é a representação figurativa de algo, mostra-se desde o início. As imagens do sonho com elefantes, que abrem o filme, sugerem em síntese um evento de grande violência. Para os ocidentais, o elefante é imagem viva do peso, da lentidão e da falta de jeito. Na mitologia asiática, em contraste, a ideia que se faz desse animal é muito diferente. Ele é símbolo do poder dos reis, bem como de paz e a riqueza. Não simboliza peso bruto, mas equilíbrio. No filme, a cena inicial é metáfora da era vitoriana. Os elefantes evocam o poder da Inglaterra no fim do século XIX. Ao mesmo tempo, servem de crítica aos efeitos da indústria e da mecanização sobre os seres humanos e o meio ambiente.

À Newsweek, Jack Kroll abordou o filme enquanto metáfora da época. “Lynch estava claramente interessado nos aspectos simbólicos da história“, disse o crítico. Dessa forma, “vê Merrick como metáfora distorcida e trágica (…) da sociedade industrial que [esmagou] a Inglaterra vitoriana com punhos de ferro”.

O estilo visual de O Homem Elefante

No filme, as sombras de tipo expressionista criam no espectador um efeito de opressão. Por sua vez, os ruídos ásperos das engrenagens lembram o berro dos elefantes. Os sons geram suspense e medo à medida que se relacionam, de modo quase subliminar, a industrialização violenta ao caos da selva. Para obter esse efeito, o diretor de fotografia Freddie Francis se inspirou principalmente na Hammer Films, produtora britânica que revolucionou o cinema de horror nos anos 1950.

Francis usou preto e branco (para contraste), tons metálicos, toques do gótico e elementos da revolução industrial (fábricas, fumaça, neblina). O protagonista deformado surge nesse ambiente como um símbolo dos fracos e oprimidos, numa atmosfera de recria de forma brilhante o mundo vitoriano. Isso faz do filme, acima de tudo, uma história das cidades modernas e suas constantes transformações.

Elementos expressionistas

As relações com o expressionismo alemão se mostram tanto na pintura de Lynch quanto em seus filmes. No cinema, ele usa temas e elementos (o sonho, a dupla identidade, o choque entre mundos), bem como as técnicas formais dessa escola. Assim sendo, há distorções (de corpos e formas), ângulos oblíquos de câmera e cenários bizarros, quase góticos. Afinal, os filmes expressionistas eram altamente estilizados.

Com o preto e branco já utilizado em Eraserhead (1977), Lynch evoca os filmes silenciosos da escola expressionista. Assim como eles, cria contrastes (luz e sombra, feio e belo, Bem versus Mal) com efeito de provocar terror. A influência do pintor Francis Bacon também é expressiva, já que a atmosfera ao mesmo tempo sedutora e sinistra da sua obra também se destaca.

O homem elefante como personagem

Os Amantes (1928) de Reené Magritte mostra duas pessoas cobertas pelo véu da paixão e do desejo. O quadro reflete um dos temas do pintor: a necessidade de enxergar através do véu que oculta a realidade do mundo e das coisas. Não por acaso, o homem elefante surge como uma figura de capuz no filme de Lynch, que recupera essa ideia. Em outras palavras, o pano que encobre as feições grotescas do personagem deficiente oculta um oásis de bondade e candura.

Amante dos livros e da música, Merrick é culto e sensível. Nesse sentido, podemos relacionar a figura antropomórfica desse “homem elefante” com Ganesha, o deus hindu das ciências e das letras, cuja cabeça é o símbolo da sabedoria. Seu maior desejo é se relacionar com as pessoas; não só busca a humanidade, como também quer ser visto nesses termos, não como objeto de curiosidade e ganância.

Acuado pela multidão hostil numa estação de trem, o homem elefante berra: “Eu não sou um animal. Eu sou um ser humano. Eu sou um homem”. Esse é o clímax do filme. Por analogia, o personagem é metáfora do próprio cineasta em início de carreira. Afinal, Lynch era uma alma frágil e isolada em busca de sua própria voz. E, com esse filme, ele de fato provou seu talento na direção de nomes como John Hurt e Anthony Hopkins. Por conseguinte, os astros elevam sua obra a um nível shakespeariano.

Referências

O grotesco (1986), de Wolfgang Kayser.

“O cinema limítrofe de David Lynch” (Tese, PUC/SP, 2003), de Rogerio Ferraraz.

Cinema Studies: the key concepts (2006), de Susan Hayward.

Masters of Cinema: David Lynch (2010), de Thierry Jousse.

A arte do cinema: uma introdução (2013), de David Bordwell e Thompson.

Dicionário de símbolos (2020), de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.

Bowie’s Elephant Man debut 40 years ago today, em: https://www.davidbowie.com/blog/2020/7/29/bowies-elephant-man-debut-40-years-ago-today

Retrato de cineasta pintando en el estudio: relaciones entre pintura y cine en David Lynch: The Art Life (2016)“, de Ángel Justo Estebaranz (2018).

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. O Homem Elefante (e o elefante) como símbolo, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/o-homem-elefante-e-o-elefante-como-simbolo/. Acesso em: 20/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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