Coisas estranhas acontecem em Hawkins, Indiana. Em 1983, uma fenda interdimensional se abriu na pacata cidadezinha americana, soltando os monstros que vivem do outro lado. Essa é a premissa de Stranger Things, um dos originais mais queridos da Netflix. Ambientada nos anos 1980, a série tirou seus temas de Stephen King, Ridley Scott, e John Carpenter, entre outros, bem como dos jogos de RPG. Além desses paralelos tão óbvios, veremos que uma das principais influências para a segunda temporada foi o escritor H. P. Lovecraft.
Adaptando Lovecraft
De acordo com Michael Kelahan, os contos de horror de Lovecraft atraíram diretores, roteiristas e atores tanto de Hollywood quando da cena independente. Andy Black, Andrew Migliore & John Strysik, S.T. Joshi e outros citam dezenas de adaptações ou filmes inspirados na sua obra desde, pelo menos, os anos 1960. De fato, as convenções do horror têm grande apelo sobre as novas gerações, arrastando-as para a literatura.
Nos Estados Unidos, os contos de Lovecraft inspiraram Roger Corman, Daniel Haller, Ridley Scott, John Carpenter, Stuart Gordon, Brian Yuzna e tantos outros cineastas. Assim, através deles, o cinema dos anos 80 se apropriou de elementos narrativos, estéticos e filosóficos, mesclando o horror e a ficção científica. Os clássicos Alien (1979) e O Enigma de Outro Mundo (1982), por exemplo, fizeram o dever de casa: valorizam a atmosfera, mais do que a ação.
No século XXI, Lovecraft ganha cada vez mais espaço na cultura pop, principalmente no trabalho daqueles que foram crianças nos anos 80 e hoje estão à frente da indústria criativa. Esse é o caso dos irmãos Duffer, criadores de Stranger Things. Além desse exemplo, inúmeros filmes, séries, livros e games se apropriaram de elementos lovecraftianos nas últimas décadas, enfatizando alguns deles e minimizando outros.
Lovecraft vai ao subúrbio
Visto que as mídias contemporâneas se voltam para os anos 80, essa tendência que ganhou força na última década, criando, até mesmo, um gênero “retrô”. Muito além da ambientação, Stranger Things não só faz várias referências à cultura pop daquela época, como também depende delas. Isso porque muitos de seus temas vêm de obras que buscaram em Lovecraft sua inspiração. Sejam de cineastas ou escritores, elas deram um lar para as próximas gerações, um local para onde as obras audiovisuais contemporâneas sempre voltariam.
Alguns dos filmes mais icônicos dos anos 80 são, inegavelmente, os contos de Lovecraft nos subúrbios. Nas palavras de Joshua Rothman, eles “tocam nas fantasias sinistras e paranoicas, que vêm do passado colonial e racista dos Estados Unidos, e as suavizam, assim as fazem se desenrolar num contexto mais inocente”. Na ponta do iceberg, Stranger Things captura o espírito da vida americana conforme retratou o cinema dos anos 80. Num nível mais profundo, no entanto, a série toca nos velhos mitos do país.
As influências de Lovecraft em Stranger Things
Os irmãos Duffer admitiram, para a Entertainment Weekly, a influência de Lovecraft na segunda temporada. A princípio ela é sutil, porque, muitas vezes, surge nas mídias de formas indiretas. Às vezes tão indiretas que pode ser difícil afirmar se há algo de Lovecraft ali, ou se o cineasta apenas teve ideias parecidas. No entanto, se a adaptação não passa de um processo de apropriação, Stranger Things se apropria dessa obra com criatividade – tanto direta (a partir da obra em si) quanto indiretamente (pelo trabalho de outros, que ela influenciou).
Mais fácil do que dizer o que é uma adaptação, seria dizer o que ela não é. Neste caso, de acordo com Linda Hutcheon, meras alusões a outras obras não contam. Longe disso, Stranger Things se apropria de elementos-chave dos contos de Lovecraft. A segunda temporada é ainda mais lovecraftiana, já que os Mitos de Cthulhu surgem como recursos narrativos e criam uma atmosfera de horror cósmico. Assim, fazem de Hawkins um lugar estranho, invocam a sombra de um monstro e levam um dos personagens à beira da loucura.
A Cor que caiu em Hawkins
Na segunda temporada de Stranger Things, a zona rural de Hawkins vira uma paisagem de horror muito semelhante às de Lovecraft. No episódio 1 (2.1 “MADMAX”), o delegado Jim Hopper (David Harbor) conduz uma investigação com o propósito de descobrir quem envenenou as plantações de abóbora de um fazendeiro. A princípio, a culpa é de uma estranha praga: os frutos apodrecem no solo e as feridas pretas atraem enxames de moscas. Com o típico bairrismo americano, mas sem provas, o dono das terras (Fenton Lawless) acusa o vizinho de tê-las envenenado.
No episódio 2 (2.2 “Trick or Treat, Freak”), o delegado interroga o vizinho (Al Mitchell), que vira o jogo e culpa o outro homem, já que as suas terras sofrem do mesmo mal. Ele tem um álibi e diz nunca ter visto algo parecido. Então, leva o delegado à sua fazenda, onde a praga se espalha rapidamente. Muco viscoso brota dos cascos das árvores e o cheiro é insuportável. Enquanto faz vigília à noite, em meio às brumas, Hopper se impressiona com a extensão de terra morta.
No episódio 3 (2.3 “The Pollywog”), a paisagem evoca os “dias estranhos” e o “descampado maldito” de “A cor que caiu do espaço” (1927). Este, de acordo com Joshi, foi o primeiro conto de Lovecraft que uniu o horror e a ficção científica, o que viria a ser a “marca registrada de seu trabalho tardio”. Também foi o favorito do escritor, que o definiu como um “estudo de atmosfera”. De fato, nas palavras do biógrafo, Lovecraft “raramente conseguiu capturar a atmosfera de horror inexplicável como fez [nesse conto]”.
A origem da praga das abóboras
“A cor que caiu do espaço” conta a tragédia de uma família de fazendeiros depois que um meteorito cai nas suas terras. A substância alienígena do corpo celeste, que chamam de “cor” pela falta de definição, contamina o solo, a água, os animais e as pessoas que lá vivem. Todos sentem seus efeitos, enlouquecendo e sofrendo terríveis mutações enquanto a terra apodrece. Nas linhas que abrem o conto, o narrador dá rica descrição da zona rural:
Nos espaços abertos, e em especial ao longo da antiga estrada, pequenas fazendas empoleiravam-se nas encostas (…). As ervas daninhas e os espinheiros reinavam, e coisas furtivas e selvagens farfalhavam em meio à vegetação rasteira. Uma névoa de inquietude e opressão pairava sobre tudo; um toque irreal e grotesco (…).
O fazendeiro Ammi Pierce recorda os “dias estranhos” que sucederam a queda do meteorito. Seu vizinho Nahum Gardner sentia-se orgulhoso de sua extraordinária safra, mas, apesar da beleza das frutas, elas tinham “amargor doentio”. Logo depois, conclui que toda a colheita se perdeu. Ao relatar os eventos, sabe que a culpa é do meteorito, que envenenara o solo. No momento em que as pessoas chegam para ver o estranho fenômeno, “todos concordaram que plantas como aquelas jamais cresceram em um mundo saudável”.
Mas nada parece pior do que o “descampado maldito” no coração de um vale – “naqueles cinco acres de desolação cinzenta que se estendiam sob o céu como uma grande mancha corroída por ácido em meio aos campos e bosques”. “Não havia vegetação de nenhum tipo em toda aquela extensão de terra — apenas um fino pó cinzento que nenhum vento parecia espalhar”, relata o narrador. “As árvores próximas eram doentes e retorcidas, e muitos troncos mortos apodreciam ao redor”. Quase um século antes de Stranger Things, o conto lançou as bases para essa apropriação.
Monstros e outras coisas estranhas…
A zona rural de Hawkins vira paisagem de horror, mas a praga nas plantações de abóbora é efeito do Mundo Invertido, não de um meteorito. Em rota de colisão com mundo real, essa dimensão alternativa infecta o solo e abre fissuras no tecido da realidade. Hopper descobre uma das fendas enquanto explora passagens subterrâneas (2.4 “Will the Wise”) que fazem clara referência a Alien, de Ridley Scott, que é o filme lovecraftiano por excelência. Com suas paredes gosmentas e nódulos que cospem bílis, as passagens lembram o interior da espaçonave abandonada no planeta inóspito, no filme de Scott. Nesses cenários inegavelmente lovecraftianos, de natureza quase orgânica, o policial se perde e é capturado por tentáculos vivos (tentáculos!).
Nos episódios seguintes, Joyce (Winona Ryder) e Bob (Sean Astin) entram nas cavernas para salvar o delegado. Também nos subterrâneos e num ferro-velho, Dustin (Gaten Matarazzo) e seus amigos enfrentam seres monstruosos que chamam de “Demo-dogs”, pois são prole do “Demogorgon” da primeira temporada.
De acordo com Noël Carroll, os monstros vêm de regiões externas ou desconhecidas — continentes perdidos, profundezas do mar e da terra, espaço sideral; ou dos lugares marginais, ocultos ou abandonados. Em Lovecraft, é nos arredores de Arkham, nos acres de desolação cinzenta e na cidade em ruínas de “A sombra sobre Innsmouth” (1936) que os monstros vivem. Aliás, não é por acaso que os monstros de Stranger Things vêm de outro mundo, uma versão sombria do pacífico subúrbio americano.
*Este texto é a versão adaptada de um trabalho que o autor apresentou no Philosophycon 6: Metaphysical Horror, na Polônia, em 2019.
Referências
O Chamado de Lovecraft (Tese, 2019), de Lúcio Reis Filho.
“A cosmovisão de H.P. Lovecraft em Stranger Things” (Revista Ícone, 2017), , de Lúcio Reis Filho.
“Stranger Things 2: Behind the sequel’s big, bad ‘shadow monster'” (EW, 28/09/2017), de Tim Stack.
The Old, American Horror Behind “Stranger Things” (The New Yorker, 17/08/16), de Joshua Rothman.
I am Providence: The Life and Times of H. P. Lovecraft (2013), de S.T. Joshi.
A Theory of Adaptation (2013), de Linda Hutcheon.
H.P Lovecraft goes to the movies (2011), de Michael Kelahan.
Lurker in the Lobby: A Guide to the Cinema of H.P. Lovecraft (1995), de Andrew Migliore e John Strysik.
A filosofia do horror ou paradoxos do coração (1999), de Noëll Carroll.
“Crawling celluloid chaos – H.P. Lovecraft in cinema” (Necronomicon – The Journal of Horror and Erotic Cinema – Book 1, 1996), de Andy Black.
The Dream Cycle of H.P. Lovecraft (Ballantine Books, 1995).
Leia mais sobre as influências de Lovecraft em Stranger Things:
Will Byers: o mais lovecraftiano de Hawkins
Devorador de Mentes: de onde vem o monstro de Stranger Things?
Bônus: assista à palestra de Lúcio Reis Filho no “PhilosophyCon 6: Metaphysical Horror” (em inglês):
Mais da série “Stranger Things”. Parte 1 | Parte 2 | Parte 3
Como citar este artigo? (ABNT)
REIS FILHO, L. Stranger Things e Lovecraft: quais as relações?, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/stranger-things-influencias-de-lovecraft-na-serie-da-netflix/. Acesso em: 26/12/2024.