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Hellraiser III: a polarização do Bem contra o Mal

Como resultado do sucesso de Hellraiser: Renascido do Inferno (1987) e sua continuação, Hellbound: Hellraiser II, o retorno de Pinhead seria inevitável. Não surpreendentemente, a trama de Hellraiser III: Inferno na Terra (1992) gira em torno da sua ressureição do Líder dos Cenobitas. Ao mesmo tempo que busca resolver o cliffhanger do segundo filme, traz mudanças para a franquia. De acordo o ator Doug Bradley, fica evidente nos primeiros dois títulos que os Cenobitas operam por meio do Cubo das Lamentações. O terceiro filme, entretanto, mostra um Pinhead que se libertou das leis e regras do Inferno. Ele volta como um personagem muito mais sinistro e mau, cujo propósito é derramar sangue.

Mudanças na franquia

Conforme notou John Kenneth Muir, os anos 1990 foram um ponto de virada para o horror. Naquela década, a transição dos slashers para os filmes de serial killers ou stalkers refletiu um distanciamento de certa “artificialidade” do gênero, muito comum até então. Ainda que os assassinos dessa nova safra de filmes usassem meios similares para matar suas vítimas, a mudança veio em favor do realismo ou naturalismo. O terceiro filme da franquia de Clive Barker, certamente, faz parte dessa tendência.

A migração da franquia para os Estados Unidos é uma das explicações para a mudança. Em resumo, as ambientações mais tradicionais do gótico – como a casa de família, de Renascido do Inferno, e o sanatório, de Hellbound – são deixadas de lado. O horror dos Cenobitas toma as ruas de Nova York, e a guerra do Bem contra o Mal ganha destaque. Por isso, Hellraiser III é muito mais um filme de ação e de monstro, em contraste com o filme original, que caiu nas graças do público em 1987. Essa tendência segue na contramão de um princípio da teoria literária de H. P. Lovecraft, para quem “a atmosfera, e não a ação, é o grande desejo da ficção estranha”. Este princípio define, inegavelmente, os primeiros filmes.

A vingança de Pinhead

Em Hellraiser III, Pinhead não obedece nada além de seu próprio compasso moral. Ao contrário do mítico Prometeu, o Líder dos Cenobitas está “desacorrentado”; sua essência demoníaca (dessa vez, em termos negativos) é livre para tocar o terror, já que não se curva mais diante do seu mestre, o deus das trevas Leviatã. Nas palavras do diretor Anthony Hickox, “Pinhead escapou do Inferno. Tentei aproximá-lo de uma pessoa real, muito mais cruel, mas também muito mais realista”. Em contraste com o monge amoral do primeiro filme, o personagem se tornou uma figura anárquica que se delicia com a violência.

Em uma cena do filme, Pinhead promove um massacre em um clube de rock, onde trucida dezenas de jovens com suas correntes e ganchos. Faz isso como ato de pura crueldade. Autores como Paul Kane e John Muir criticaram a sua transformação em assassino implacável, que persegue e mata quem cruzar seu caminho. Afinal, o Pinhead de Hellraiser III deixa de ser o artífice da tortura dos primeiros filmes. Torna-se mais um ícone slasher, um serial killer ao moldes de Leatherface (O Massacre da Serra Elétrica), Freddy Krueger (A Hora do Pesadelo), Michael Myers (Halloween) e Jason Voorhees (Sexta-Feira 13).

O Bem contra o Mal em Hellraiser III

Os capangas de Pinhead

“Não há Bem, não há Mal”, afirma Pinhead em Hellraiser III. De acordo com Muir, essa frase diz muito sobre a época de produção do filme, já que os anos 1990 seriam tempos de ambivalência moral. No entanto, há cenas em que a polarização dos opostos fica bem clara. A fim de recuperar a Caixa de invocação, Pinhead usa seus novos poderes para criar “pseudo-Cenobitas”. Faz isso ao infundir e transmutar a carne de suas vítimas com dispositivos eletrônicos. Ainda que esses capangas menores não sejam exatamente maus, tampouco são bons, e se opõem à polícia e aos “heróis”. Como zumbis teleguiados que lembram os Borgs de Star Trek, eles são imunes a balas e implacáveis.

Pinhead, o iconoclasta

Contudo, o grande momento de Hellraiser III e o mais espetacular exemplo de luta do Bem contra o Mal não se passa nas ruas. No clímax, a repórter Joey Summerskill (Terry Farrell) foge de Pinhead e seu exército crescente de Cenobitas, e busca refúgio na Igreja. Lá, diz para o padre (Clayton Hill) que os demônios estão atrás dela. A porta então se abre, e Pinhead entra. Os vitrais explodem à sua passagem, conforme atravessa o salão. O padre ergue um crucifixo, mas Pinhead faz o símbolo derreter e queimar sua mão. O Líder dos Cenobitas então diz: “Não farás para ti imagens de escultura”.

Após recitar um dos Dez Mandamentos, a chacota com a Igreja continua. Pinhead extrai dois alfinetes do crânio e perfura suas próprias mãos. Depois abre os braços, numa imitação zombeteira de Jesus na cruz, então proclama: “Eu sou o caminho”. No altar, a chama das velas sobe, a janela às suas costas se estilhaça e a igreja começa a cair. Em seguida, Pinhead arranca parte da própria carne e força o padre a comê-la. “Este é o meu corpo, este é o meu sangue. Felizes são aqueles que vêm à minha ceia”, diz, numa recriação profana da Comunhão. Esta é, sem dúvida, uma das cenas mais iconoclastas do cinema de horror.

Hellraiser III como representação de seu tempo

De acordo com Muir, a polarização, o dualismo e a iconoclastia de Hellraiser III dizem muito sobre o contexto social e político de início dos anos 90. Embora a Guerra Fria tivesse chegado ao fim, com a subsequente ascensão dos Estados Unidos à grande potência mundial, a economia do país caminhava para a recessão. A própria ideia de uma “nova ordem mundial” abria um leque de medos e incertezas. Além disso, as formas tradicionais de autoridade estavam em franca decadência.

Ao longo do século XX e de toda a história do gênero, a matéria-prima para o horror são os eventos do tempo presente. Sabemos que Hellraiser III surgiu em um momento de mudança e inflexão. Nesse sentido, evoca o abalo nas estruturas e um senso crescente de desconforto para com as falhas morais. Também faz parte do que Douglas Cowan chamou de “escalada da insignificância divina nos arcos narrativos”, isto é, a decadência da tradição religiosa dominante que marca os primeiros filmes da franquia. Conforme veremos, essa escalada atingiu seu ápice no quarto filme, Bloodline (1996).

Referências

Dicionário de símbolos (2020), de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.

“Demons to some, angels to others: eldritch horrors and hellbound religion in the Hellraiser films”, por Lúcio Reis Filho. Em: Divine Horror (2017).

The Hellbound Heart: A Novel (2009), de Clive Barker.

Religion and Horror on the Silver Screen (2008), de Douglas Cowan.

Horror Films of the 1980s (2007), de John Kenneth Muir.

The Hellraiser films and their legacy (2006), de Paul Kane.

Nightmare Movies: Horror on Screen since the 1960s (2001), de Kim Newman.

“Crawling Celluloid Chaos – H.P. Lovecraft in Cinema”, por Andy Black. Em: Necronomicon – The Journal of Horror and Erotic Cinema (1996), v. 1.

The Hellraiser Chronicles (1992), de Stephen Jones. Entrevista com Clive Barker.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Hellraiser III: a polarização do Bem contra o Mal, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/hellraiser-iii-a-polarizacao-do-bem-contra-o-mal/. Acesso em: 21/11/2024.

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