Hellraiser: mitologia e literatura na obra de Clive Barker

No sótão de um lar de classe média, um homem perverso volta à vida para se vingar. Ele foi vítima de uma relíquia macabra, cujos demônios agora o perseguem. Esta é a premissa de Hellraiser: Renascido do Inferno (1987), uma das produções mais arrepiantes e originais da sua época. Monstros grotescos, mutilações, sadismo e rios de sangue fazem dele uma obra-prima do “body horror”, isto é, do horror corpóreo ou físico. Filmes desse gênero tão popular nos anos 1980 – os slashers e os híbridos de horror/ficção científica, por exemplo – causam nojo e prazer. Fazem isso através de cenas de violência extrema que incluem, com efeito perturbador, a destruição física dos seus personagens.

Hellraiser gerou uma franquia de sucesso, embora seus filmes, um após o outro, tenham perdido qualidade e coesão com o cânone. Mas o primeiro de todos, lançado em setembro de 1987, virou cult. Isso se deve, sobretudo, à imagem dos demônios e sua relação com a estética sadomasoquista dos anos 70/80. Vamos desvendar os temas da literatura e da mitologia nesse clássico do horror, que faz 35 anos!

As influências de Hellraiser

Adaptação do livro de The Hellbound Heart (1986), do britânico Clive Barker, Hellraiser: Renascido do Inferno tem raízes nos mitos e na literatura. A relíquia macabra que traz os demônios para a Terra contém as dores e os martírios da carne. Por analogia, é como a Caixa de Pandora da mitologia grega. Também evoca a lenda de Fausto, já que seu tema central é a barganha ou pacto com o Diabo. Na verdade, o filme combina duas versões: a de Marlowe, do homem que dá sua alma em troca de conhecimento, e acaba no Inferno; e a de Goethe, na qual ele foge da punição após enganar o Diabo. Além disso, alguns de seus temas vêm da literatura de horror, de nomes como H. P. Lovecraft (1890-1937).

Clive Barker e Doug Bradley, como Pinhead.

Lovecraft foi um dos escritores mais influentes do século XX. Nos anos de 1920 e 1930, com seus contos de horror cósmico, o norte-americano trouxe contribuições que definiriam a literatura desde então. Nos “Mitos de Cthulhu” – como parte de sua obra é conhecida –, pessoas indefesas descobrem fontes de saber oculto e monstros horrendos, o que inevitavelmente acaba em tragédia. Além desses, destacam-se temas como a religião arcana, os cultos de sangue, os mundos de sonho e o universo amoral. Tudo isso fez nascer uma rica “pseudomitologia”, universo fantástico que inspirou vários autores na época de Lovecraft e depois dele. Esse foi o caso de alguns cineastas, como Clive Barker.

Temas lovecraftianos em Hellraiser

Hellraiser: Renascido do Inferno foi a primeira experiência de Barker como diretor de cinema. Tanto nas páginas quanto na tela há, sem dúvida, temas de Lovecraft. Andy Black fez essa relação em um artigo seu, de 1996. Nele, definiu o britânico como um “autor [que] parece explorar as ricas camadas de criatividade lovecraftiana … apresentando os agora familiares e interdimensionais Cenobitas, monstros grotescos e corredores ou cavernas labirínticos”. Os seres demoníacos, de moralidade ambígua e feições nunca antes vistas, certamente nivelam sua obra à de Lovecraft e outros grandes nomes do horror.

No momento em que os Cenobitas, surgem como monges terrivelmente mutilados, vemos a concepção original que Barker faz dos demônios. O principal deles, Pinhead, ganhou esse nome devido às suas feições – já que nos créditos ele é apenas o “Líder dos Cenobitas”. O padrão de cicatrizes horizontais e verticais que se cruzam, na cabeça pálida, tem um alfinete enterrado em cada interseção. Por isso o nome, que em inglês significa “cabeça de alfinete”. Assim, com voz grave e senso de humor irônico, o ator shakespeariano Doug Bradley deu ao gênero do horror um dos seus maiores ícones. No filme, ele é um tipo de juiz demoníaco, isto é, uma entidade para além do Bem e do Mal (em trajes de couro).

Abra a Caixa, e eles vêm: chegam os Cenobitas 

Hellraiser tem relação com o gótico suburbano, isto é, subgênero do horror que faz dos bairros de classe média palco de eventos estranhos. O filme começa no sótão de uma velha casa, onde o hedonista e perverso Frank Cotton (Sean Chapman) resolve um quebra-cabeça que adquiriu no Marrocos. À primeira vista uma inocente caixa, o Cubo das Lamentações é chave para espaços além do plano terreno, onde diferentes níveis de realidade se chocam. Além disso, é meio para invocar os Cenobitas, seres que existem nas esferas dimensionais onde dor e prazer se completam. Frank inadvertidamente faz isso.

Os Cenobitas surgem pela primeira vez numa versão interdimensional do sótão, matadouro cheio de correntes e pedaços de carne humana pendurados. Eles se intitulam “exploradores das regiões extremas da experiência” e parecem membros de uma ordem monástica. Mas vestem trajes de couro preto, suas feições são terrivelmente desfiguradas e sua missão é profana. A fim de atingir o êxtase, eles causam dor – mutilam a carne, arrancam órgãos e dilaceram almas –, já que dor e prazer são inseparáveis em seu mundo. Frank sintetiza essa ideia em uma frase: “Temos que suportar certas coisas, e é isso que torna os prazeres tão doces”. Contudo, o homem paga um preço alto. Ganchos atravessam e destroem seu corpo, e sua alma vai parar em um plano muito além do nosso. Mas, como vamos descobrir, tais seres demoníacos não são maus por natureza. O filme é prova de que todos os monstros são humanos.

A religião cristã à avessas

Posteriormente, o irmão de Frank, Larry (Andrew Robinson), e sua esposa Julia (Clare Higgins) herdam a velha casa. O lugar é um antro da perdição, onde objetos sexuais e imagens católicas dividem espaço. A reação do casal diante dos ícones sagrados diz muito sobre o que está por vir. A meio caminho das escadas, Julia encara a imagem de Cristo com desdém; Larry não pensa duas vezes, e joga tudo na lixeira do lado de fora. Sinal de declínio da religião dominante? De fato, há em Hellraiser uma forte provocação à religião cristã, à hipocrisia da classe média e à instituição da família. Na mulher, a casa desperta memórias da relação adúltera e violenta que teve com o cunhado, pouco antes de se casar.

Durante a mudança, enquanto sobe as escadas com uma cama, Larry fere a mão e derrama sangue no assoalho. A casa então absorve o fluido vital e traz Frank de volta à vida, como um corpo seco degenerado que Julia descobre no sótão, pouco depois. Ainda obcecada pelo cunhado, ela decide ajudá-lo a recuperar sua forma original para que possam fugir juntos. “Cada gota de sangue é mais carne nos meus ossos”, diz Frank. Feito uma viúva negra, Julia passa a atrair homens para o sótão, onde os mata a sangue frio com golpes de martelo. Depois que a filha de Larry, Kirsty (Ashley Laurence), descobre o plano macabro, tem que lidar com a madrasta má, o tio perverso e os Cenobitas, que vêm atrás deles.

A polarização do Bem e do Mal

Em filmes como O Exorcista (1973) e A Profecia (1976) há uma distinção inegavelmente clara entre o Bem e o Mal. Essa polarização, que em termos religiosos significa a luta de Deus com o Diabo, é por vezes óbvia em Hellraiser. Ela se revela, por exemplo, nas personagens femininas que se opõem: Kirsty e Julia. A garota, cujo nome lembra “Cristo” em inglês, surge pela primeira vez em foco suave, o rosto iluminado feito um anjo. Já o visual da madrasta vai de roupas claras a azul escuro, o que reflete a sua alma, cada vez mais sombria. O simbolismo parece óbvio. Conforme explicam Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, “a luz e as trevas constituem, de forma mais geral, uma dualidade universal”.

No Ocidente, a oposição luz/trevas é aquela dos anjos e demônios. Os Cenobitas são demônios, sem dúvida, mas não no sentido maniqueísta. Isso porque são inegavelmente ambíguos do ponto de vista religioso e borram as fronteiras entre os opostos. A princípio, não agem para trazer o caos; pelo contrário, sua ordem é disciplinar. Eles seguem regras de conduta e só dominam quem abre a Caixa, isto é, quem os procura em primeiro lugar. De acordo com o Líder dos Cenobitas, eles são “demônios para uns, anjos para outros”. Sua religião é demoníaca, mas no Inferno de onde vêm não há fogo ou poços de piche; seus corredores são de pedra, como os de uma igreja ou monastério. Aliás, o próprio nome “Cenobita” vem do termo coe-nobite, que significa membro de uma comunidade monástica.

A moral da história

No clímax, o perverso Frank se alimenta do sangue de Julia, matando-a sem remorso, e os Cenobitas finalmente o capturam. Após dizer suas palavras finais – “Jesus chorou” – em tom de deboche, com o corpo atravessado por ganchos e os braços abertos numa imitação grotesca de Cristo na cruz, seu corpo desfaz-se em pedaços. Pouco antes, os Cenobitas evitam a morte de Kirsty pelas mãos de seu tio, mas ela também abriu a Caixa e sua alma agora é deles. Enquanto tentam capturá-la, o filme avança para a batalha final – e uma conclusão –, que não existe no livro. A garota, então, usa a Caixa para enviar os demônios de volta para o Inferno, um a um. Logo em seguida, a casa desaba em ruínas.

Sem dúvida, Hellraiser: Renascido do Inferno habita um universo amoral que deve muito a Lovecraft. Ainda assim, não abandona por completo a dualidade cristã, a guerra do Bem contra o Mal. A polarização só cresce filme após filme, até o quarto título da franquia. Os seis que vieram em seguida são filmes policiais e de horror auto-referencial, pois focam nos Cenobitas e em alusões pontuais à própria série, mas sem desenvolvê-los. À medida que adotam ideias mais convencionais, afastam-se do horror cósmico lovecraftiano e deixam de lado sua essência, como os monstros ambíguos e amorais.

Referências

Dicionário de símbolos (2020), de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.

“Demons to some, angels to others: eldritch horrors and hellbound religion in the Hellraiser films”, por Lúcio Reis Filho. Em: Divine Horror (2017).

The Hellbound Heart: A Novel (2009), de Clive Barker.

Horror Films of the 1980s (2007), de John Kenneth Muir.

The Hellraiser films and their legacy (2006), de Paul Kane.

Nightmare Movies: Horror on Screen since the 1960s (2001), de Kim Newman.

“Crawling Celluloid Chaos – H.P. Lovecraft in Cinema”, por Andy Black. Em: Necronomicon – The Journal of Horror and Erotic Cinema (1996), v. 1.

The Hellraiser Chronicles (1992), de Stephen Jones. Entrevista com Clive Barker.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Hellraiser: mitologia e literatura na obra de Clive Barker, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/hellraiser-mitologia-literatura-e-clive-barker/. Acesso em: 01/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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