O coelho na mitologia indígena americana

O coelho é um símbolo da Páscoa, mas você já parou para pensar o que tem a ver o simpático roedor com a tradicional festividade cristã? Essa relação, embora pareça estranha à primeira vista, tem raízes muito mais antigas – vem dos mitos e lendas de diferentes culturas ao redor do mundo. Vamos descobrir o papel dos coelhos na cultura, na religiosidade e na mitologia indígena americana!

A relação dos coelhos com a Páscoa

Se, na tradição cristã, a Páscoa representa a ressureição, de onde vem o simbolismo dos coelhos? Em primeiro lugar, não é novidade que esses animais se reproduzem rapidamente na primavera, dando à luz grandes ninhadas. Por isso, tornaram-se historicamente símbolos de fertilidade e renovação, pois representam um ciclo de vida que renasce e floresce depois do inverno. Vale lembrar que a primavera, no hemisfério Norte, vai do fim de março ao fim de junho. Há, também, a relação dos coelhos com Eostre (ou Ostara), deusa da fertilidade e da primavera da mitologia nórdica e germânica. A divindade tinha uma lebre que adorava ovos e, às vezes, era representada com a cabeça desse animal. Mas, conforme vamos descobrir, tais seres são igualmente representativos fora do mundo europeu. Eles são importantes entre os povos indígenas americanos, como animais totêmicos ou personagens de histórias tradicionais.

O simbolismo do coelho nas culturas nativas

Para a maioria dos povos nativos do Sudeste da América do Norte, o coelho é uma entidade trapaceira. É um personagem despreocupado, que não se envolve em transgressões graves e aparece nas histórias infantis. No entanto, como a maioria dos trapaceiros, é propenso a um comportamento humoristicamente impróprio, que inclui gula, descuido e um ego inflado. No folclore de algumas tribos do Sudeste, foi o Coelho quem roubou o fogo e o trouxe para o povo.

O coelho é o animal que trouxe o fogo para o povo hitchiti, da Geórgia, nos Estados Unidos. Antes, o fogo era exclusivo do Povo do Céu, mas o Coelho achava que seu povo também deveria tê-lo. No Festival do Milho Verde, ele molhou o topo da cabeça com óleo e, enquanto dançava ao redor da fogueira, baixou a cabeça para que o fogo chegasse ao cabelo. Ele então fugiu, abrigando-se no oco de uma árvore. É o que nos conta J. A. Coleman em seu O Dicionário de Mitologia (2021).

Entre os algonquianos dos Granges Lagos, o herói Nanabozho foi por vezes referido como a “Grande Lebre” – embora tenha a forma de um homem, à exceção das vezes em que surge como o animal. Nas tribos da América Central, os coelhos são os símbolos tradicionais da fertilidade. Na mitologia asteca, por exemplo, eram associados ao pulque (um tipo de bebida alcoólica), à embriaguez e à promiscuidade.

Representações do coelho nas artes

Sabemos que a mitologia indígena americana é rica em histórias fantásticas, relacionadas à religiosidade e às práticas ritualísticas dos povos nativos. Repletas de deidades, seres mágicos e heróis, que representam forças da natureza e os espíritos ancestrais, muitos deles em forma de animal, tais histórias são narradas frequentemente na forma de mitos, lendas, canções, danças e ritos cerimoniais.

Em algumas culturas, os coelhos estão associados a clãs. As tribos com Clãs de Coelho incluem os Hopi e o Shawnee, por exemplo. Havia também entre os quatro grupos cerimoniais dos Kiowa uma Sociedade dos Coelhos (chamada Kasowe), cujos membros eram todos crianças e adolescentes. Além disso, a Dança do Coelho era uma prática social importante para as tribos silvícolas do Nordeste e das planícies do Norte. Para os Oneida, os coelhos deram a dança aos homens a fim de que demonstrassem respeito e apreço e apreço por eles. Deram, então, seu nome à dança em forma de gratidão.

Ao longo dos séculos, artistas indígenas e não indígenas se utilizaram de personagens, histórias e símbolos das mitologias nativas para criar obras de arte que celebram a cultura e a história dos povos nativos. Assim, pintores, escultores, gravadores e artesãos de diferentes tribos e regiões do continente americano ajudam a preservar e manter viva suas ricas tradições sociais e culturais.

A máscara de coelho

Os Kwakwaka’wakw são conhecidos por suas máscaras cerimoniais, que representam animais totêmicos da mitologia indígena, como o espírito do urso, do corvo e do salmão. Nos ritos e práticas religiosas desse povo, que habita a costa noroeste do Pacífico, as máscaras têm o papel de honrar e invocar os espíritos e as divindades que representam. Eram adereços ritualísticos no potlatch, cerimônia culturalmente importante entre os povos indígenas da região costeira da Colúmbia Britânica.

Realizado em diferentes ocasiões, o potlatch é um rito de passagem, pois celebra a mudança de status social de um membro do grupo (casamento, nascimento, morte ou iniciação na vida adulta). Também ajudava a restaurar o prestígio de quem perdia a honra, por cair de uma canoa ou falhar na caça, por exemplo. A cerimônia incluía principalmente três etapas: festa, entretenimento e distribuição de presentes. A segunda consistia em canto e dança de membros mascarados do grupo.

As máscaras representavam animais totêmicos, como a orca, o corvo, o castor ou o tubarão, bem como figuras e seres lendários. No Museum of Cultural Masks, no estado norte-americano do Arizona, há um máscara que representa o coelho, animal totêmico importante por fornecer sua pele. Ela é feita de madeira de cedro vermelha, fibras vegetais, miçangas e tintura.

Referências

O Dicionário de Mitologia (2021), de J. A. Coleman.

Native American Legends of the Southeast: Tales from the Natchez, Caddo, Biloxi, Chickasaw, and Other Nations (2011), de George E. Lankford.

Animal Lore & Legend: Rabbit (American Indian Legends, 1996), de D. L. Birchfield.

Rabbit Dance, an Oneida legend – retold by Desiree Barber. Em: www.uwosh.edu/coehs/cmagproject/ethnomath/legend/legend16.htm.

Native American Rabbit Mythology. Em: http://www.native-languages.org/legends-rabbit.htm.

Kwakwaka’wakw Rabbit (Second Face – Museum of Cultura Masks). Em: https://www.maskmuseum.org/mask/kwakiutl-rabbit/.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. O coelho na mitologia indígena americana, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/o-coelho-na-mitologia-indigena-americana/. Acesso em: 28/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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