Dandara: Trials of Fear e suas referências à cultura brasileira

Nos últimos anos, um título que certamente se destacou na cena indie é Dandara: Trials of Fear. Isso se deve, sobretudo, à narrativa atraente, às mecânicas e à jogabilidade. Desenvolvido pela brasileira Long Hat House e lançado em 2018, esse jogo eletrônico de plataforma é o mergulho em um mundo misterioso e sombrio, repleto de referências à cultura brasileira. Deve-se também ao protagonismo de uma mulher negra, que resgata uma personagem brasileira do limiar entre as lendas e a história. Vamos conhecer esse jogo, e descobrir como ele incorpora tais elementos no enredo.

Lugares e cenários brasileiros

Os cenários de Dandara: Trials of Fear são deslumbrantes. Alguns tiveram inspiração no Brasil colonial, outros remetem a diferentes culturas e a ambientações futuristas. O mundo onde a história se passa é de fantasia, mas com forte influência da arquitetura, das paisagens e da história do Brasil. Essa parece uma tendência das narrativas contemporâneas do gênero, a exemplo do livro O mago revolucionário (2023) de R. M. Albuquerque. Das construções coloniais às florestas exuberantes, o jogo capta a essência de ambientes que podemos reconhecer como brasileiros (até no nome), ainda que modificados.

Quem foi Dandara dos Palmares?

A heroína de Dandara: Trials of Fear homenageia uma guerreira e líder quilombola do século XVII. Primeira e única companheira de Zumbi, Dandara ajudou a organizar a comunidade, elaborou estratégias de resistência e liderou homens e mulheres contra as forças enviadas pelas autoridades coloniais. Sua principal missão era proteger o Quilombo dos Palmares (que localizava-se na Capitania de Pernambuco). De acordo com Janaína Caetano e Carla Castro, Dandara perseguia incansavelmente a liberdade.

Alguns estudiosos consideram Dandara uma personagem lendária, envolta nas brumas do mito, por isso questionam sua real existência. Todavia, conforme lembram Janaína Caetano e Carla Castro, as lendas em torno dessa figura converteram-se em verdade coletiva e historicamente consagrada através dos relatos populares. Falar sobre Dandara e seu legado é, portanto, fundamental, já que ela e tantas outras protagonistas negras foram excluídas ou apagadas da nossa história ao longo do tempo.

Dandara: protagonista negra

A heroína de Dandara: Trials of Fear é mulher negra corajosa e habilidosa, capaz de combater os opressores e superar grandes desafios. Assim como sua contraparte histórica, a personagem é a esperança de libertação de um mundo à beira do colapso, cujo povo, antes livre e feliz, vive agora oprimido e isolado. De forma criativa e imaginativa, esse jogo de plataforma promove o resgate de uma figura histórica da resistência negra no Brasil. A inclusão de uma protagonista negra também contribui, sem dúvida, para a representatividade e a diversidade nos games.

As habilidades especiais e os orixás

Os orixás da mitologia africana e afro-americana são deuses que controlam certos aspectos da natureza, da vida em sociedade e da condição humana. Dandara: Trials of Fear incorpora tais entidades em sua narrativa – não de forma explícita, mas sugerida, através das habilidades especiais que a heroína conquista ao longo da jornada. Cada uma representa um orixá, como é o caso da Flecha da Liberdade e do Espelho de Concha. Elas permitem avançar na história e enfrentar os obstáculos, ao mesmo tempo que enriquecem a experiência do jogador com referências simbólicas à religiosidade de matriz africana.

Para saber mais sobre os orixás, leia Os deuses de Wakanda em Pantera Negra.

Seres lendários e abominações cósmicas

Diferentes seres do folclore brasileiro habitam os níveis de Dandara: Trials of Fear, embora sejam todos reimaginados e inseridos no enredo a fim de provocar imersão. Um deles é o Abaporu, o antropófago do quadro de Tarsila do Amaral, que também faz referência às estátuas de Chozo de Metroid. Tais encontros enriquecem a história do jogo, pois ajudam a criar um mundo fantástico.

Por sua vez, os chefes são abominações cósmicas que parecem ter saído dos Mitos de Cthulhu. Augustus, a Névoa Imutável (enorme face flutuante de uma autoridade militar) e Eldar, a Voz Exterior (odienta voz midiática sem rosto) representam, sobretudo, a opressão e o racismo estruturais no Brasil. O mais lovecraftiano de todos os chefes é, sem dúvida, Tormenta, o Medo Inominável.

Trilha sonora

A música e os efeitos sonoros de Dandara: Trials of Fear também remetem à brasilidade, ao mesmo tempo que seguem convenções dos jogos de plataforma. A trilha sonora cria uma atmosfera única nos diferentes níveis, levando a narrativa adiante e amplificando a emoção.

Porque Dandara é importante

Dandara: Trials of Fear é uma brilhante homenagem à cultura brasileira. Ao incorporar diferentes referências, seja dos mitos e lendas e da história do Brasil, o jogo acrescenta camadas que enriquecem a narrativa, oferecendo aos jogadores uma experiência singular e marcante. Além disso, o protagonismo de uma heroína negra revela a importância da diversidade e da representatividade na indústria dos games.

Essa pérola indie abre as portas para que, daqui em diante, o vasto repertório da cultura brasileira forneça material para novos jogos, com experiências cada vez mais ricas e inclusivas.

Referências

“Dandara dos Palmares: uma proposta para introduzir uma heroína negra no ambiente escolar” (Revista Eletrônica História em Reflexão, v. 14, 2020), por Janaína Oliveira Caetano e Helena Carla Castro.

Mitologia dos Orixás (2001), de Reginaldo Prandi.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. (ed.)Dandara: Trials of Fear e suas referências à cultura brasileira, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/dandara-trials-of-fear-e-suas-referencias-a-cultura-brasileira/. Acesso em: 18/04/2025.

André Gregatti

André Gregatti

André é um entusiasta de Games e Ficção Científica desde muito cedo. Ele conquistou seu diploma de graduação em História na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e aprofundou-se no universo dos jogos como especialista em Game Design pela Michigan State University (MSU). Impulsionado por sua paixão pelos jogos, André canaliza seu conhecimento no blog Arte do Game, onde desvenda os aspectos fundamentais do design em jogos notáveis. No trabalho de conclusão de sua graduação, André explorou as representações do tempo em Doctor Who, uma série pela qual nutre uma devoção duradoura. Esse estudo demonstra sua habilidade em mesclar seu amor pela história com sua paixão por Ficção Científica, agregando uma perspectiva única ao seu percurso acadêmico.
André Gregatti

André Gregatti

André é um entusiasta de Games e Ficção Científica desde muito cedo. Ele conquistou seu diploma de graduação em História na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e aprofundou-se no universo dos jogos como especialista em Game Design pela Michigan State University (MSU). Impulsionado por sua paixão pelos jogos, André canaliza seu conhecimento no blog Arte do Game, onde desvenda os aspectos fundamentais do design em jogos notáveis. No trabalho de conclusão de sua graduação, André explorou as representações do tempo em Doctor Who, uma série pela qual nutre uma devoção duradoura. Esse estudo demonstra sua habilidade em mesclar seu amor pela história com sua paixão por Ficção Científica, agregando uma perspectiva única ao seu percurso acadêmico.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *