Gilberto Gil: imortalidade de um Orixá

A recente eleição de Gilberto Gil para a cadeira de número 20 da Academia Brasileira de Letras (ABL) foi compreendida de diversas formas pela sociedade. Bem, preferimos partir desse tema para debater a obra de Gil e sua proximidade com a religiosidade africana.

A construção da referência em Gilberto Gil

Gilberto Gil é um artista notadamente cosmopolita, ou seja, o seu desejo de transcender as ordens preestabelecidas está presente em cada parte de sua obra. Desde sua fase na Tropicália – movimento dos anos 1960/70 que buscava divergir da ordem vigente –, marcada pelos álbuns Gilberto Gil (1968) e a coletânea de artistas em Panis et Circenses (1968). Até os trabalhos mais recentes, como OK, OK, OK (2018).

Já no ano de 1968, o artista se vestiu de imortal da ABL para a capa do disco Gilberto Gil.

No entanto, este texto procura focar em um aspecto característico da antologia do artista baiano: o Divino. Nesse ponto, é interessante notar que, nas palavras de Gil para o Roda Viva, a compreensão sobre “Deus” é efêmera e ampla. Acima de tudo, ultrapassa a visão cristã, sendo Deus um ser presente em tudo.

Assim, músicas como “Se eu quiser falar com Deus” (1981) ganham outra conotação. Além disso, a proximidade de Gilberto Gil com as religiões de matriz africana demonstra a amplitude de sua envergadura cultural. As canções “Filhos de Gandhi” (1976) e “São João Xangô Menino” (1976), parceria com Caetano Veloso, mostram a importância da Bahia em todo esse processo. Afinal, a primeira se inspirou num tradicional bloco carnavalesco de Salvador – “Filhos de Gandhy”; a segunda, no sincretismo de São João com o Orixá Xangô.

Refavela (1977)

Ao abordar a relação do artista com o que está além do mundo material, é inevitável aprofundar a análise do álbum Refavela (1977) e sua concepção. Nessa obra há canções que revelam não só a diversidade rítmica africana, que Gil incorporou, mas também a gama de histórias, contos e mitos. Por exemplo, a música “Baba Alapalá” (1977).

De acordo com o próprio Gil, a ideia para a música que deu nome ao álbum nasceu de uma viagem à Nigéria em 1977. Lá, o artista se apresentou no Festival de Arte e Cultura Negra, que reuniu pensadores negros do mundo todo. O objetivo da FESTAC 77 era debater a situação do povo preto fora e dentro do continente onde nasceu a humanidade. A soma de intelectuais e artistas foi bastante produtiva, fazendo com que Gil tivesse contato mais profundo com as comunidades pretas de África.

Gil, o Orixá

Esse caldo cultural transformou a produção das músicas. O artista, então, fincou de vez sua presença entre os principais cantores e compositores negros do mundo, em conexão com o divino africano. O retorno para o Brasil e a produção desse álbum mostram um artista inegavelmente conectado com suas raízes em diáspora.

Naquele momento, Salvador era a maior comunidade preta fora de África e contava com forte presença das religiões de matriz africana. Gilberto Gil se envolveu cada vez mais com esse movimento. Já influente no meio musical brasileiro, o baiano seria celebrado pelas gerações que vieram posteriormente, que veem nele uma verdadeira referência para todos, principalmente para o artista negro brasileiro. Devido ao contato com sua ancestralidade, alguns o chamam carinhosa e respeitosamente de “Orixá”.

A imortalidade de Gil

O músico baiano cumpre a profecia lançada em 1968, subverte a ordem cultural e sobe à galeria dos imortais da Academia Brasileira de Letras (ABL).

Vestido de Oxalufã, Oxalá velho do Camdomblé.

Gilberto Gil torna-se, então, quase a síntese de uma ala da cultura popular, mas não em contraste com arte clássica brasileira. O baiano e sua turma, com o passar do tempo, tornaram-se o paradigma dentro da MPB, ironicamente ao desejo tropicalista. De certa forma, ocupar a cadeira 20 da Academia Brasileira de Letras é uma verdadeira virada nesse jogo. Sendo o segundo homem negro a ocupar uma posição nesse espaço, Gilberto Gil demonstra que, apesar de Imortal, permanece sempre vivo e preciso.

Bônus: O que são Orixás/Sincretismo

Arte de Nando Motta

Nesse ponto, é interessante definir brevemente os orixás, as divindades presentes nas religiões de matriz africana. Tratam-se de verdadeiros deuses e deusas que carregam suas características e que, de acordo com os relatos, realizam tarefas e desejos. Estão presentes na caminhada dos homens desde sua criação, por Oxalá, e a passagem para o mundo dos mortos, por Iansã.

A fim de angariar o povo africano para a religiosidade católica, o europeu passou a identificar essas características e fazer com que cultuassem santos correlatos. Mas, como subversão, o povo africano e escravizado muitas vezes dizia acender uma vela para o santo, quando, na verdade, acendia para seu Orixá.

Referências

Gilberto Gil é eleito imortal da Academia Brasileira de Letras (Brasil de Fato, 12/11/2021).

Gilberto Gil lança ‘Obatalá’ (Estado de Minas, 04/09/2019).

Antropofagia e Tropicália – devoração/devoção (UAI, 07/04/2017).

Saiba mais

Especial: Consciência Negra

Mitologia africana e afro-americana

Ramon Gonçalves

Ramon Gonçalves

Professor de História, músico e outras tantas coisas. Movido a base de música, história e café. Amante de cultura popular, principalmente as artes ligadas ao povo preto. Divido a minha vida entre antes e depois de ouvir Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan, João Bosco e tantos outros... Formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), participou de projetos de pesquisa ligados a Patrimônio Histórico e as Relações Étnicas Raciais.
Ramon Gonçalves

Ramon Gonçalves

Professor de História, músico e outras tantas coisas. Movido a base de música, história e café. Amante de cultura popular, principalmente as artes ligadas ao povo preto. Divido a minha vida entre antes e depois de ouvir Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan, João Bosco e tantos outros... Formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), participou de projetos de pesquisa ligados a Patrimônio Histórico e as Relações Étnicas Raciais.

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