Os ancestrais africanos em Pantera Negra

In memoriam Chadwick Boseman (1976-2020)

Grande sucesso do cinema, Pantera Negra (2018) levou para as telas o primeiro herói afrodescendente dos quadrinhos. Contudo, T’Challa é mais do que um herói; sob os auspícios da deusa Bast, ele é o herdeiro do trono e o protetor de Wakanda, nação ficcional africana (secreta, mas tecnologicamente avançada). No filme, ele deve liderar seu povo rumo a um novo futuro. O professor de estudos clássicos Patrice Rankine, da Universidade de Richmond (Estados Unidos), fez uma análise da mitologia de Pantera Negra destacando os ancestrais africanos, conforme veremos.

A verdade mítica em Pantera Negra

Em primeiro lugar, Rankine cita um dos preceitos de O Herói de Mil Faces (1949), de Joseph Campbell. O mito é mais verdadeiro do que a própria verdade. Nesse sentido, a história épica de Pantera Negra é real a ponto de abrir nossos olhos para algo que antes passava quase totalmente despercebido. O filme conta a história de uma diáspora[1] e traz uma pureza africana anterior à corrupção e à invasão europeias. Espécie de paraíso afrofuturista high-tech, Wakanda põe em questão como seria o mundo se o comércio transatlântico de escravos nunca tivesse ocorrido.

Mas, segundo Rankine, o filme traz um desafio ainda mais profundo – se é que pode haver uma questão contemporânea mais profunda do que a escravidão africana e suas consequências. A partir da ideia de que a humanidade surgiu na África, Pantera Negra questiona a própria verdade mítica. Isto é, como seria a humanidade se ela não tivesse caído em seus instintos mais corruptos? A reflexão se faz presente em uma história que mescla a mitologia europeia e os ancestrais africanos.

Paralelos com a mitologia europeia

Pantera Negra faz vários paralelos com a mitologia europeia. Por exemplo, Rankine compara T’Challa (Chadwick Boseman) a Rômulo, o herói que matou o irmão e fundou Roma. Após derrotar Killmonger (Michael B. Jordan), T’Challa cria um “mito de fundação” ao mesmo tempo que leva adiante o legado dos líderes negros Martin Luther King[2] e Nelson Mandela.[3] Então, ao revelar Wakanda para o mundo, ele se opõe à ideia da barbárie africana. Ou seja, opõe-se à velha e falsa história que teria levado à colonização e à conquista por parte dos europeus.

Ao trazer a história para o contexto norte-americano, a comparação de T’Challa com King e de Killmonger com Malcolm X[4] fica implícita. Mas, em parte, a força da atuação de Chadwick Boseman está na sua evocação do líder sul-africano Nelson Mandela. Afinal, Pantera Negra deu voz à esperança. No fim, quando T’Challa discursa às Nações Unidas, seu sotaque fez dele o mais recente ícone internacional da África.

Decerto, não podemos esquecer das mulheres. As personagens Nakia (Lupita Nyong’o), Okoye (Danai Gurira) e Shuri (Letitia Wright) nos lembram do mito das amazonas, que mais recentemente ganhou as telas na forma da Mulher Maravilha. As amazonas são mulheres guerreiras que vivem independentemente dos homens em sua própria nação intocada. Não muito diferente de Wakanda em sua analogia com o mundo real.

O papel dos ancestrais africanos

Para Rankine, no entanto, é mais importante refletir sobre o papel dos ancestrais africanos e da “mitologia negra” no filme. O professor explica que, ao se espalharem pelas Américas, os africanos da região subsaariana[5] trouxeram consigo seus ancestrais, seus deuses.

No Novo Mundo, esses ancestrais foram disfarçados com trajes ocidentais. Por exemplo, a deidade africana ioruba ligada às doenças e à cura, Omolu (Babalú-Ayé), virou São Lázaro, mantendo todos os símbolos do santo cristão. (A varíola e a lepra, os cães que lambem suas feridas, o cajado de pastor). Dito isso, mesmo disfarçados, Omolu e os outros ancestrais africanos nunca foram deixados para trás.

Os ancestrais encarnados

Os ancestrais africanos estão muito presentes em Pantera Negra. Não apenas na maneira como T’Challa e Killmonger invocam seus pais do mundo dos mortos, conforme adquirem poder e autoconhecimento. De certa forma, eles também são a encarnação dos ancestrais.

Em sua inventividade e poder, T’Challa é o deus Ogun, que deu o ferro à humanidade. Além disso, por depender de mulheres como sua irmã Shuri (a inventora) e as outras guerreiras, T’Challa também é Omolu, que não conhece sua verdadeira beleza até ser tocado por Iansã.

Esses e outros ancestrais representam o sincretismo pan-africano que moldou a diáspora e, em seguida, refluiu para a África. Nos ritos americanos, a adoração envolve certa sensibilidade, já que homens e mulheres têm acesso ao seu poder por meio da encarnação. Nesse sentido, Pantera Negra é a verdade que muitos esperavam ver nas telas.

Referências

The Mythic Truth of Black Panther, por Patrice Rankine (Society for Classical Studies, 26/02/2018). Em: https://classicalstudies.org/scs-blog/rankine/blog-mythic-truth-black-panther

Mitologia dos Orixás (2001), de Reginaldo Prandi.

O Herói de Mil Faces (1949), de Joseph Campbell.

Saiba mais

Mitologia africana e afro-americana

Consciência Negra

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Os ancestrais africanos em Pantera Negra, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/os-ancestrais-africanos-em-pantera-negra/. Acesso em: 24/04/2024.


[1]  Dispersão de povos, por motivos políticos ou religiosos.

[2] Martin Luther King Jr. foi um pastor batista e ativista político estadunidense que se tornou o líder e a principal personalidade do movimento dos direitos civis, de 1955 até seu assassinato, em 1968.

[3] Nelson Mandela foi um advogado, líder rebelde e presidente da África do Sul de 1994 a 1999, considerado o mais importante líder de seu país, vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 1993, e pai da moderna nação sul-africana.

[4] Malcolm X foi um dos defensores do Nacionalismo Negro nos Estados Unidos.

[5] A África subsaariana corresponde à parte do continente africano situada ao sul do Deserto do Saara.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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