Afrofuturismo: a mitologia encontra a ficção científica

Você já ouviu falar em afrofuturismo? Pense numa viagem espacial com naves, roupas e objetos high-tech, mas, ao mesmo tempo, com toques das tradições africanas. Temos, aqui, dois mundos que se encontram: a ancestralidade e a ficção científica. Esta, você deve saber, é um gênero da literatura (e de outras áreas, posteriormente, como o cinema, os games, a música…). A ciência e a tecnologia avançadas, a exploração do espaço, a viagem no tempo, os alienígenas, entre outros, são alguns dos seus principais temas. Nesse sentido, a ideia do afrofuturismo é trazer para esse gênero a estética e os elementos das culturas africanas. Mas não é só isso!

O afrofuturismo junta ficção científica, história e fantasia para focar nas lutas, vivências e experiências negras, com destaque para a escravidão. Aliás, esse processo tem uma relação óbvia com a ficção científica. Pense na abdução de seres humanos e sua readaptação à força, por meio de opressão e violência, em uma terra estrangeira. Para o escritor Ishmael Reed, os negros sempre foram vistos como alienígenas nos Estados Unidos, isto é, gente que não faz parte da “experiência americana”. Em contraste, o afrofuturismo é um movimento estético e cultural de resgate da mitologia africana e valorização da identidade dos afrodescendentes. Além disso, busca reconectá-los com sua ancestralidade esquecida.

As origens do afrofuturismo

Nas origens do movimento estão escritores afro-americanos de ficção científica como Octavia Butler e Samuel Delany, bem como o músico de jazz Sun Ra. Nascido Herman Poole Blount, ele criou um personagem que misturava ficção científica e mitologia. Se você não reparou, o nome que ele passou a usar (“Sol Rá”, em inglês) vem do deus-sol egípcio. Essa tornou-se, então, a ideia central do afrofuturismo: a conexão com o passado, com o místico e o antigo.

Sun Ra e sua Arkestra no Central Park (Nova York, 29/07/1989). Jack Vartoogian/Getty Images.

O termo afrofuturismo surgiu em 1993 com o texto “De volta para o afrofuturo”, de Mark Dery. Desde então, sua estética ganhou força nas páginas dos livros, na música e nas artes visuais. No rico imaginário que criou em torno da cultura afro-americana, o movimento influenciou o músico George Clinton, a artista Ellen Gallagher, os cineastas Wanuri Kahiu e Spike Lee. Nomes como Outkast e Janelle Monáe, por exemplo, também na música, fundiram o jazz, a ficção científica e a psicodelia. Além deles, Beyoncé e outros artistas levaram a ideia a um grande público de forma muito positiva.

O estilo afrofuturista

Na moda, o afrofuturismo traz roupas longas, sobrepostas e com várias camadas, peças metálicas, acessórios de ficção científica, cabelos descoloridos e maquiagens em tons de azul e roxo.

Veja a galeria de imagens abaixo:

O afrofuturismo como lugar

Pantera Negra (2018) trouxe de volta o interesse pelo afrofuturismo, que às vezes pode retratar um futuro no qual os negros usam a tecnologia para se tornarem líderes de seus mundos. (Mensagem esta que, infelizmente, ainda parece muito ausente da ficção científica). Assim sendo, os temas afrofuturistas estão no cerne dessa adaptação dos quadrinhos da Marvel. Acima de tudo, o filme é uma reflexão sobre o papel de um líder negro num mundo cujas estruturas de poder estão nas mãos dos brancos.

Pantera Negra se passa no fictício país de Wakanda. A nação africana, que o resto do mundo acredita ser muito pobre, é secretamente rica graças às suas reservas do metal fictício vibranium, bem como ao domínio de avanços tecnológicos e científicos que o metal permitiu.

A importância política

Mas o afrofuturismo projeta apenas lugares futuros? Na verdade, Kênia Freitas (doutora pela UFRJ, com pesquisa sobre Afrofuturismo e o Cinema Negro) observa que, além de entender o tempo de forma circular, e não linear, ele traz um mix de temporalidades. Dessa maneira, propõe um deslocamento de uma visão de mundo criada pelo homem branco.

Em síntese, enquanto tenta lidar com os traumas do colonialismo, o afrofuturismo imagina uma sociedade livre da opressão, tanto física quanto social. Pensa, a partir do presente, um futuro livre das ideias de supremacia branca e das estruturas que oprimem violentamente as populações negras. Também avalia o passado e o futuro, a fim de criar melhores condições para a geração atual de negros. Faz isso por meio dos temas da ficção científica, que muitas vezes se traduzem nas artes.

Referências

“Afrofuturismo: uma conversa com Kênia Freitas”. Em: https://tinyurl.com/yxwu9e2y.

“Afrofuturism”, no Tate. Em: https://tinyurl.com/yyz48pvy.

“Afrofuturism Has Always Looked Forward”, por Taylor Crumpton (Clever, 24/08/2020). Em: https://tinyurl.com/y3bbeffb.

“Dossiê Afrofuturismo” (Geledés – Instituto da Mulher Negra). Em: https://tinyurl.com/yctofdww.

“It’s Not Just Black Panther. Afrofuturism Is Having a Moment” (Time, 20/05/2018). Em: https://time.com/5246675/black-panther-afrofuturism/.

Para saber mais

Afrofuturism: The World of Black Sci-Fi and Fantasy (2013), de Ytasha L. Womack.

Saiba mais sobre a mitologia africana e afro-americana!

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

Uma resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *