Quem é a deusa hipopótamo em Cavaleiro da Lua?

Em Cavaleiro da Lua, os deuses do Egito antigo andam entre nós (com o propósito de realizar suas vontades e olhar pelos mortais). Essa premissa não é inédita para os fãs da Marvel, lembrando que a série do Disney+ é adaptação dos quadrinhos. No enredo, à exceção do deus da lua Khonshu, as divindades se manifestam em forma humana. Mas o episódio 5 surpreende ao mostrar uma deusa hipopótamo. A surpresa deve-se ao fato de essa representação antropozoomórfica, isto é, parte humana, parte animal, não ser muito comum nas telas, pois há sempre uma tendência de “humanizar” ou reimaginar os deuses. (O próprio Khonshu é bastante estilizado, com um crânio de ave no lugar da cabeça). Deve-se também ao visual da deusa, que surge da mesma forma como os antigos egípcios a imaginavam. Vamos conhece-la!

A iconografia composta

No episódio 5, Steven Grant e seu alter ego Marc Spector (ambos interpretados por Oscar Isaac) se veem presos nos corredores de um labiríntico manicômio. De repente, quando tentam fugir por uma porta, levam um susto com a divindade que veem do outro lado. Parte humana, parte animal, ela é Taueret (Tawaret) ou Tuéris (do grego Thoueris), a deusa hipopótamo das mulheres e crianças.

Taueret é uma deusa híbrida com corpo e cabeça de hipopótamo, pernas e braços de leão, cauda de crocodilo e seios femininos. Assim como era o caso de outras divindades, a exemplo da deusa Bastet e do deus do Nilo Sobek, sua iconografia é composta, já que reúne traços humanos e de animais. (Contudo, são os traços de hipopótamo que prevalecem na série). O nome da deusa significa “A Grande”.

Amuleto de Taueret (664-332 a.C). The Metropolitan Museum of Art.

No Egito antigo, o hipopótamo fêmea era adorado e venerado como símbolo da fecundidade. Acreditava-se, então, que essa divindade auxiliava a mãe quando vinham ao mundo os deuses, os reis e simples mortais. Assim se explica a grande quantidade de imagens, estátuas, amuletos e representações nos templos (veja imagem acima), que mostram Taueret de pé nas patas posteriores.

As funções da deusa hipopótamo

Nos textos religiosos e na mitologia egípcia, Taueret era uma divindade benigna e protetora das crianças, principalmente nos casos de picada de escorpião, quando os egípcios chamavam por ela. Também era protetora das mulheres grávidas, que usavam amuletos com o formato da deusa hipopótamo. Fabricadas em larga escala, as pequenas figuras tinham a barriga volumosa em virtude de sua relação com a gravidez. Vale lembrar que, na cidade de Heliópolis, os egípcios referiam-se a ela como “A que deu a luz à Enéade” (o grupo de nove deuses egípcios).

Há, sobretudo, relação com a nutrição e a fertilidade. Em primeiro lugar, os vasos com o formato da deusa tinham orifícios em um dos mamilos para derramar o leite, o que se fazia junto de um feitiço. Isso porque o leite, para os egípcios, tinha propriedades mágicas. Em segundo lugar, a deusa hipopótamo tinha relação com o Nilo de modo que, logo após as cheias, recebia oferendas para que trouxesse boas colheitas. Afinal, sabe-se que as águas tinham conotação igualmente religiosa no Egito antigo.

Taueret, assim como o deus-anão Bes, afastava as forças malignas que poderiam prejudicar as crianças e as mulheres durante o trabalho de parto. Nesse sentido, sua aparência feroz tinha uma razão de ser. A deusa hipopótamo também poderia auxiliar no renascimento dos mortos. A natureza benigna da deusa hipopótamo fez dela uma favorita entre as pessoas comuns.

O que Taueret faz na série?

©Marvel Studios 2022.

De acordo com o historiador e filósofo grego Plutarco (46-120 d.C.) Taueret era concubina de Set. No entanto, ela deixou o deus das forças caóticas para ficar ao lado de Hórus, deus dos céus, na disputa pelo trono egípcio. Mas, em Cavaleiro da Lua, a deusa hipopótamo desempenha uma outra função: é ela quem guia o morto em sua viagem ao Além-Mundo (Duat). A princípio, a deusa explica que o Além assumiu a forma de uma ala de hospital psiquiátrico porque sua verdadeira natureza é impossível à compreensão. Em seguida, a vemos conduzir sua barca rumo aos Portões de Osíris. Nesse sentido, a deusa é substituta de Anúbis, já que a série sugere que o deus dos mortos estaria aprisionado.

Referências

Dicionário de símbolos (2020), de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.

The Routledge Dictionary of Egyptian Gods and Goddesses (2005), por George Hart.

Tawaret Amulet (The Collection / Egyptian Art – The Metropolitan Museum of Art), em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/545344.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Quem é a deusa hipopótamo em Cavaleiro da Lua?, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/quem-e-a-deusa-hipopotamo-em-cavaleiro-da-lua/. Acesso em: 31/03/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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