The Sandman: entre o folclore e a mitologia

A série The Sandman, da Netflix, é adaptação de uma das graphic novels mais célebres de todos os tempos. De autoria do britânico Neil Gaiman, “Sandman” foi publicada pela DC Comics de 1989 a 1996 e teve 75 edições, que saíram posteriormente em dez volumes de capa dura. Nesse ínterim, a obra ganhou mais de 20 prêmios Eisner e foi um dos pilares do selo de horror e fantasia Vertigo.

O sucesso de Sandman deve-se, sobretudo, a universo fantástico e ao estilo único do autor, que mistura várias personificações, mitos, lendas, figuras históricas e elementos do ocultismo. Para seu protagonista gótico e sombrio, Gaiman inspirou-se em uma entidade da mitologia e do folclore europeus. Mas foi pelas mãos do autor de Deuses Americanos (2001), Coraline (2002) e Marvel 1602 (2003-2004), que o “modelador” ou “controlador de sonhos” tornou-se ícone da cultura pop. Vamos descobrir suas origens!

O Sandman no folclore

No folclore europeu há um personagem que faz as pessoas dormirem, e inspira doces sonhos. Faz isso derramando areia mágica nos seus olhos. Ele é o Sandman, ou Homem de Areia, a entidade mítica do sono em diferentes mitologias. No folclore escandinavo, por exemplo, o Sandman borrifa areia nos olhos das crianças à noite. Como resultado, a remela e a sensação de “areia nos olhos” viriam de sua ação na noite anterior. Por aqui, temos o João Pestana, mito equivalente do folclore português. O personagem era popular em histórias e livros infantis muito antes do Sandman de Neil Gaiman.

Versões na literatura moderna

O conto Der Sandmann (1816), do escritor alemão E. T. A. Hoffmann, mostra o quão sinistra a entidade do sono poderia ser. Conforme relata a enfermeira do protagonista, o Sandman jogava areia nos olhos das crianças que não dormiam, e os olhos depois caíam. Ele então os recolhia e levava para seu ninho de ferro da lua, onde dava de alimento para seus filhos. No conto folclórico Ole Lukøje (1841), de Hans Christian Andersen, o Sandman tem esse nome e faz um menino sonhar por causa de sua areia mágica. Essas são versões do personagem, bastante populares, na literatura do século XIX. No entanto, suas raízes são mais profundas e chegam à mitologia grega.

As origens do Sandman na mitologia

Morfeu, por Jean-Bernard Restout (c. 1771).

Não por acaso, o Sandman de Neil Gaiman se chama Morfeu. Afinal, esse era o nome do deus do sonho na mitologia grega – um dos mil filhos de Hipno, por sua vez, a personificação do Sono. O nome vem do grego e significa “a forma” ou “modelador”, de modo que indica a função desse deus. Isso porque ele formava ou moldava os sonhos dos mortais enquanto dormiam. Além disso, sendo Morfeu um mensageiro dos deuses, ele surgia nos sonhos dos reis em forma humana. Nesse sentido, há uma relação com o espírito do sonho que Zeus envia ao rei Agamenon, na Ilíada.

Os sonhos na mitologia grega

De acordo com Homero, os sonhos habitam as costas sombrias do oceano ocidental. Foi o lendário poeta quem disse que os sonhos enganosos vêm por um portão de marfim, enquanto os verdadeiros saem de um portão de chifres. Seu conterrâneo Hesíodo chamou de sonhos os filhos de Nyx (Noite); em contraste, Ovídio chamou-os de filhos de Hipno (Sono). O poeta romano nomeou três sonhos, a saber, Morfeu, Ícelo ou Fobetor e Fântaso. Para Eurípides, eles eram gênios de asas negras e filhos de Gaia (Terra).

Oniros, os espíritos dos sonhos

Segundo algumas versões do mito, Morfeu era o líder dos Oniros (Oneiroi), isto é, os daemons ou personificações dos sonhos. Tais espíritos de asas negras emergiam à noite, como bandos de morcegos dos lares cavernosos no Érebo, terra da escuridão eterna além do sol nascente. Os Oniros cruzavam os dois portões (pylai) do mundo dos sonhos. O primeiro, feito de chifres, era fonte dos sonhos proféticos que os deuses mandavam, enquanto o outro, de marfim, trazia sonhos falsos e sem sentido. O termo grego para “sonho” é oneiros (plural oneiroi); para “pesadelo”, é melas oneiros (sonho negro).

Morfeu e Hipno

Cabeça de bronze de Hipno (c. séculos I – II d.C.), cópia do original helenístico. Museu Britânico, Londres.

Assim como a maioria dos deuses do sono e dos sonhos, o Morfeu da mitologia grega é alado. Com suas asas grandes e rápidas, que batem sem fazer barulho, o deus se move até confins da Terra em movimento ascendente. Ele também é um psicopompo, função de Caronte (barqueiro do Mundo Inferior) e Hécate (deusa da magia); isto é, uma entidade que guia a alma dos mortos no além, ou na vida pós-morte.

A representação de Hipno também era a de um jovem alado. Com asas nos ombros, ele percorria a terra e o mar em grande velocidade, a fim de pôr os seres em estado de sonolência. Seus atributos incluíam um chifre de ópio, para induzir o sono; um caule de papoula (planta conhecida como dormideira); um galho pingando água do rio Lete (Esquecimento), ou a tocha invertida.

Representação contemporânea de Hipno e seu irmão Tânato, por awanki.

Contudo, Hipno não passava de uma abstração nos tempos homéricos. Foi Ovídio quem deu, posteriormente, uma rica descrição do seu palácio encantado, onde tudo dorme. A divindade habitava o Érebo e subia ao céu todas as noites no cortejo de sua mãe Nyx. Além de pai dos Oniros, versões distintas dizem que Hipno era irmão gêmeo de Tânato (Morte).

Entra Neil Gaiman… e seu Sandman

Conforme vimos, o Homem de Areia é um personagem muito popular. Exemplo conhecido é a canção “Enter Sandman” (1991), do Metallica, cujas letras mesclam imagens de pesadelo aos rituais de ninar a criança. Já a versão de Gaiman se inspira tanto no folclore europeu quanto na mitologia grega. Sandman, ou melhor, Morfeu, é uma das sete entidades conhecidas como Perpétuos, cada uma dos quais representando uma força da natureza. Ele tem, portanto, seis irmãos: Desejo, Desespero, Destruição, Delírio, Destino e Morte. O deus dos sonhos assume forma humana, viaja aos confins da Terra e é soberano de um palácio encantado. Sua morada tem enormes portões, e lá vivem criaturas mágicas.

A série The Sandman adapta as histórias de “Prelúdios e noturnos” e “A casa das bonecas”, os dois primeiros arcos da história em quadrinhos. A trama tem início em 1916, com uma cerimônia pagã em que Morfeu é capturado por engano por um ocultista que buscava outro ser místico, a Morte. Ele faz o ritual com o propósito de pedir a ela que traga de volta à vida seu filho, recém-falecido na Primeira Guerra Mundial. Privado dos seus três objetos de poder – a algibeira, o elmo e o rubi –, Morfeu passa décadas aprisionado no porão de seu algoz. Quando consegue, enfim, escapar, a entidade do sonho sai em busca dos seus apetrechos e da sua identidade. Essa é a premissa da série da Netflix.

Referências

Dicionário de Mitologia Grega e Romana (2010), de Pierre Grimal.

Theoi Project (https://www.theoi.com/).

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. The Sandman: entre o folclore e a mitologia, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/the-sandman-entre-o-folclore-a-mitologia/. Acesso em: 30/03/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

2 respostas

  1. Ficaria horas me deliciando com o seu texto, Lucio. Além de mto bem escrito, é gostoso de ler e aprendo sempre. Parabéns!

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