O Mago Revolucionário: utopia à beira da revolução

Pense em um mundo de heróis e vilões, de magia e seres fantásticos. Parece familiar? Então adicione charretes puxadas por antas, tamanduás gigantes, frutas tropicais e espíritos da floresta, evocados por uma antiga ordem de feiticeiros. Esse é o mundo de Aracum, palco de O mago revolucionário (2023) de R. M. Albuquerque. O livro impressiona antes mesmo do início da leitura. Não só pela arte da capa ou pelo mapa-múndi que abre a história, na tradição das terras e lugares imaginários da literatura; mas também pelo projeto gráfico primoroso e pelas ilustrações ricamente coloridas de Guilherme Luzardo Carvalho. E, claro, pelas diversas referências à mitologia e à cultura brasileira. Vamos conhecer esse mundo de utopia e coragem, à beira da revolução!

Um lugar de fantasia e diversidade

No melhor estilo espada e feitiçaria, O mago revolucionário une elementos consagrados do gênero a outros próprios da cultura brasileira. Ao invés de dar nomes celtas aos seus reinos e personagens, como fazem os imitadores de Tolkien, por exemplo, o autor utiliza nomes próprios que soam como o português brasileiro, valorizando raízes africanas e indígenas, mas também latinas. E, em contraste com obras do imaginário eugenista europeu, Aracum é um lugar de diversidade, com notável protagonismo de personagens negros e povos originários ficcionais. Há também uma sexualidade à flor da pele, ora sugerida, ora mais explícita, que salta das páginas, fluida e livre das amarras normativas de gênero. Assim, o autor cria uma mitologia fantástica que não deve nada a outras fabulações da literatura.

Por trás da utopia

A história de O Mago Revolucionário começa na cidade de Tolita, ao sul de Aracum. Lá, a governadora Danga-Ubi controla com punhos de ferro um governo autoritário e violento, mas repleto de nuances, pois se estabeleceu ao combater a pobreza e desmantelar o poder das classes privilegiadas. O símbolo máximo desse regime são as escolas intensivas, com o propósito de fixar valores rígidos e preparar para o mundo as novas gerações. Nelas, a educação elementar se dá independentemente da vontade dos pais e mães, de quem as crianças são tiradas assim que nascem. Passam, então, à tutela do Estado.

Essa pedagogia traduz o princípio in loco parentis, isto é, o ato de se atribuir a um indivíduo ou organização a responsabilidade legal de educar as crianças. Em Tolita, a autoridade e o caráter disciplinador da educação – que se volta para uma formação racionalista – chegam às últimas consequências: aos mecanismos de tortura e manipulação. Não surpreendentemente, a utopia é fachada de um governo tirânico, empenhado em moldar o caráter dos jovens e calar as vozes da oposição. Para um aluno curioso e rebelde, no entanto, o lema “família é nossa comunidade” não passa de uma inversão de valores. Além disso, ele suspeita de uma grande conspiração. Seu nome é Canael.

A semente da revolução

Canael é uma “criança da paz”, da geração que nasceu depois das “Guerras Ocultas”. Pouco sabemos desse evento, tão misterioso quanto eram as “Guerras Clônicas” antes da trilogia prólogo de Star Wars (sobre elas, Obi-Wan Kenobi faz apenas brevíssima alusão no filme original de 1977). Sabemos do seu resultado, isto é, do pacto para evitar um governo teocrático, fruto da perigosa mistura de religião e política. Tolita se refundou sobre essas bases, com apreço pela ciência e pela razão, e a ideia de que todo pensamento mágico não passa de um instrumento de controle social. Daí o caráter disciplinador da educação, que doutrina jovens a respeitarem o regime e seus valores.

Mas, parafraseando Mulan (1998), a semente da revolução é como “a flor que desabrocha na adversidade”. Canael sabe que seu destino é integrar-se à sociedade como mão-de-obra barata. “Seja grato todos os dias”, dizem; mas ele rejeita a autoridade e sonha em mudar o mundo. O combustível de seu idealismo é o gosto pela teurgia, doutrina dos magos que falam com espíritos, criam objetos encantados e controlam os seres da floresta. Alguns até se transformam em animais ou mesmo em árvores, revelando um tema recorrente na mitologia mundial: a metamorfose. Há também uma referência à Atlântida dos mitos gregos, na ilha que um mago ergueu do fundo do mar para criar a sociedade perfeita. No entanto, as artes mágicas são crime em Tolita, onde seus adeptos recebem penas severas e os alunos que leem seus textos são perseguidos por subversão.

O poder da ideologia

Corajoso, puro e inocente, até mesmo ingênuo, Canael se dedica às artes mágicas, àquilo que o governo vê como “ideologia”. De acordo com Marilena Chauí, ideologia é um conjunto de ideias históricas, sociais e políticas que oculta a realidade. Faz isso com o propósito de assegurar e manter a exploração econômica, a desigualdade social e a dominação política. Portanto, ao apontar o dedo para os magos teurgistas, o regime de Danga-Ubi revela sua própria ideologia. Em Tolita, os eventos históricos são ensinados como uma inversão de valores que permite à nova classe dominante justificar seus atos cruéis. Essa é a história dos vencedores, ou seja, daqueles que detêm o poder. Mais do que isso, há mecanismos de controle e repressão que permitem aos poderosos exercer domínio sobre toda a sociedade.

Nada tem maior capacidade de mudar o estado das coisas do que um povo que conhece sua história. Canael sabe disso, e quer que as pessoas recuperem as memórias usurpadas pelo governo tirânico, pois sabe também que elas são armas na luta pela emancipação. O mundo em que vive é permeado de magia, ainda que o regime e a ideologia dominantes tentem ocultar esse fato. No momento em que seus olhos finalmente se abrem para a realidade, seus pés trilham um caminho sem volta. O rapaz sente uma revolução na soleira da porta, e quer fazer parte da mudança.

A jornada do mago revolucionário

Canael, cuja paixão pelo mar evoca o simbolismo da água, torna-se um simples estivador depois que sai da escola. Sua vida é simples, até que um amigo seu é raptado e precisa de ajuda. Nos termos de Christopher Vogler, esse é o “Chamado à Aventura”, que o pinça do “Mundo Comum”, lançando-o em uma verdadeira jornada do herói. A maga Safindê anuncia esse movimento: “você não ficará preso na sua vida comum”. Também há uma busca pelo seu potencial oculto, já que o interesse pela teurgia é genuíno e o rapaz manifesta forte conexão com as artes mágicas. Em seu caminho, conhece o velho mago e ermitão Papiguari (papel similar ao de Obi-Wan em Star Wars) e faz uma amizade improvável com o ladrão Quatuba (cujo nome é corruptela do termo indígena “quati”). Esta poderia ser a primeira formação de uma equipe de RPG, com pitadas de ironia e afeto.

Conforme o herói avança, novos companheiros cruzam seu caminho. Em um monastério longínquo, depara-se com monges adeptos da teurgia; eles praticam artes marciais, como os guerreiros das lendas asiáticas, e realizam ritos de passagem semelhantes aos das crenças indígenas, que envolvem fumo e transe meditativo. Além disso, têm uma relação com a natureza própria do animismo, que atribui uma essência espiritual às coisas do mundo. (É o caso do jacaré gigante, no clímax, que podemos associar às serpentes ou dragões da mitologia). Quando Canael decide trilhar o caminho de mago revolucionário, e assim dar sentido à sua vida, as artes mágicas se tornam seu único objetivo. Seria ele “O Escolhido”, aquele que vai mudar o estado das coisas e libertar o povo de Tolita?

O livro de R. M. Albuquerque é uma publicação da Editora Pendragon e já está à venda. Acesse o link e compre O mago revolucionário!

Para conhecer outro exemplo de narrativa fantástica contemporânea, criada por autores nacionais, leia o artigo Dandara: Trials of Fear e suas referências à cultura brasileira.

Referências

O mago revolucionário (2023), de R. M. Albuquerque.

Dicionário de símbolos (2020), de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.

A jornada do escritor (2015), de Christopher Vogler.

O que é ideologia (2008), de Marilena Chauí.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. O Mago Revolucionário: utopia à beira da revolução, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/o-mago-revolucionario-utopia-a-beira-da-revolucao/. Acesso em: 28/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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