A metamorfose em Eraserhead, de David Lynch

Em David Lynch há marcas da estética surrealista, cujos temas, expoentes e aspectos simbólicos moldaram inegavelmente sua obra; não apenas seus filmes, como também as séries de TV, as pinturas e as fotografias. A metamorfose é um desses temas, presente tanto nos seus primeiros curtas experimentais quanto em Eraserhead (1977), seu longa de estreia. Também é elemento-chave da mitologia grega e da literatura ocidental. Por isso, vale analisá-lo a fim de entender sua função nos mitos e as formas que assume nas artes visuais, com destaque para o clássico cult de Lynch.

Influência das vanguardas artísticas

David Lynch nunca negou sua atração pelo cinema de vanguarda, das primeiras décadas do século XX. No documentário Arena: Ruth, Roses and Revolver (1987) da BBC, o cineasta mencionou os artistas que o influenciaram e faz uma observação importante. De acordo com ele, o trio René Clair, Man Ray e Jean Cocteau via no cinema a mídia perfeita, pois permitiria a expressão do inconsciente.

Se o objetivo do surrealismo era esse, Lynch seria igualmente um surrealista. Não por acaso, definiu os cineastas e os pintores dessa escola como seus mentores na arte de criar imagens estranhas. Como resultado, o sucesso e a estranheza de Eraserhead deram impulso à carreira de Lynch. Desde então, ele adotaria em sua obra como um todo um estilo inegavelmente surrealista.

O surrealismo em Eraserhead

De forma altamente estilizada, Eraserhead fala sobre os desafios de um casal com um filho recém-nascido. É uma alegoria da vida de Lynch naquele momento, com doses de insônia, relações problemáticas com os vizinhos e medos da vida doméstica. A estética singular cria uma atmosfera densa e sombria, permeada de fumaça e fuligem. As cenas de animação, os efeitos práticos e o tema da metamorfose ligam o inconsciente do cineasta ao dos espectadores.

Assim, Eraserhead evoca o horror por meio do surrealismo, embora seja mais um filme abstrato. Alguns cineastas o veem mesmo como “música visual”. De fato, é possível fazer o som antes das imagens. Os filmes experimentais, por exemplo, eventualmente criam suas imagens com base em trilha sonora pré-existente. O próprio Lynch, em muitos de seus filmes, como é o caso de Veludo Azul (1986), fez boa parte do som antes da filmagem. Em Eraserhead, a trilha sonora se afasta do realismo.

A influência de Kafka

Em síntese, o filme de Lynch reflete as angústias de um homem que vê sua vida passar por várias mudanças e então recomeçar. Como alegoria, reflete a vida do próprio cineasta em tempos de incerteza, depois que seu primeiro filho nasceu, quando ele ainda era jovem e tentava se afirmar na área artística. Eraserhead é, com efeito, a viagem psicológica de seu alter ego Henry Spencer (Jack Nance), vítima de uma mudança interna que deixa suas emoções à flor da pele. Algumas cenas tocam no horror e no bizarro, mas sem deixar de lado o senso de humor macabro do cineasta.

Com sua mescla de realismo e drama familiar fantástico, Eraserhead evoca A Metamorfose (1915) de Franz Kafka – que Lynch pensava em adaptar. A relação com esse clássico da literatura é evidente. Na segunda parte do filme, as cenas do bebê-monstro (filho de Henry) agravam o sentimento de opressão psicológica, com toques do absurdo e do grotesco, traços marcantes do estilo de Lynch. De acordo com Wolfgang Kayser, o grotesco é o mundo que se torna estranho. Dito de outra forma, o que era familiar aos nossos olhos se revela inesperadamente sinistro ou inquietante (em termos freudianos); mas foi o nosso mundo que mudou. E esse mundo, herdeiro da tragédia grega, parece absurdo.

Henry e seu estranho filho.

A metamorfose na mitologia grega

Assim como a lagarta vira borboleta, há personagens lendários que mudam de forma. A metamorfose é tema de várias lendas, sobretudo dos mitos gregos, mas não apenas. A deusa Atena, depois que vence sua rival Aracne em um desafio de tecelagem, a transforma em aranha fiandeira. Na Odisseia, Ulisses ora é um jovem viril, ora toma a forma de um velho mendigo, e a bruxa Circe faz homens virarem porcos.

Os deuses do panteão olímpico têm o poder da metamorfose. Deles, Zeus é sem dúvida quem mais se transforma. Faz isso principalmente por amor, como explica Richard Buxton, mas também por vingança. Por vezes, no entanto, é difícil afirmar se a metamorfose de fato ocorre ou é meramente figurativa nos mitos. Em outras palavras, Atena voou na forma de um pássaro ou “como um pássaro”?

De acordo com Buxton, há três modos de representar a metamorfose nas artes visuais.

1- Ilustração, quando vários animais seguem uma deusa, nos quais ela parece se transformar.

2- Completa, quando Zeus vira chuva de ouro, cisne, touro, águia…

3- Híbrida, categoria à qual pertence o Minotauro, por exemplo.

O autor identificou seres meio homem, meio animal nas mitologias africana e asiática – no Egito Antigo, no Oriente Próximo e na Índia –, bem como nas tradições judaica e cristã. Enfim, o tema está presente em muitas histórias desde os antigos mitos. No caso emblemático da Metamorfose de Kafka, a transformação é completa: Gregor Samsa acorda como um inseto enorme. Já em Eraserhead e no posterior O Homem Elefante (1980), de Lynch, é híbrida e dá forma ao grotesco. Há também em Estrada Perdida (1997) uma transformação completa, em que um personagem humano vira outro.

Referências

A metamorfose 1915), de Franz Kafka.

O grotesco (1986), de Wolfgang Kayser.

“O cinema limítrofe de David Lynch” (Tese, PUC/SP, 2003), de Rogerio Ferraraz.

Masters of Cinema: David Lynch (2010), de Thierry Jousse.

A arte do cinema: uma introdução (2013), de David Bordwell e Thompson.

Forms of Astonishment: Greek Myths of Metamorphosis (2017), de Richard Buxton.

Relaciones entre pintura y cine en David Lynch: The Art Life (2016)“, de Ángel Justo Estebaranz (2018).

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. A metamorfose em Eraserhead, de David Lynch, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/a-metamorfose-em-eraserhead-de-david-lynch/. Acesso em: 04/12/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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