Na obra de David Lynch há, sem dúvida, marcas da estética surrealista. Não apenas nos filmes, como também nas séries de TV, nas pinturas e fotografias. O movimento, seus artistas e aspectos simbólicos moldaram inegavelmente a arte do cineasta norte-americano. A metamorfose é um desses aspectos, bem como um dos temas de Eraserhead (1977), seu filme de estreia. Também é elemento-chave da mitologia. Por isso, vamos analisar esse tema a fim de entender seu papel nos mitos e as formas que assume nas artes visuais. Isso depois de analisar o clássico cult de Lynch.
O surrealismo em Eraserhead
De forma altamente estilizada, Eraserhead fala sobre os desafios de um casal com um filho recém-nascido. Fala também da insônia, da relação com os vizinhos e dos medos que cercam a vida doméstica. A estética singular do filme cria uma atmosfera densa e sombria, com fumaça e fuligem, e uma trilha sonora que se afasta do realismo. As cenas de animação, os efeitos práticos e o tema da metamorfose ligam o inconsciente do cineasta ao dos espectadores.
Nesse sentido, Eraserhead evoca o horror e com o surrealismo, embora seja mais um filme abstrato. Para alguns cineastas, esse tipo de filme é como uma “música visual”. De fato, é possível fazer o som antes das imagens. Os filmes experimentais, por exemplo, eventualmente criam suas imagens com base em trilha sonora já existente. Em muitos de seus filmes, como é o caso de Veludo Azul (1986), Lynch fez boa parte do som antes da filmagem.
O cineasta nunca negou sua atração pelo cinema de vanguarda. No documentário Arena: Ruth, Roses and Revolver (1987) da BBC, Lynch cita os artistas que o influenciaram e faz uma observação digna de nota. De acordo com ele, o trio René Clair, Man Ray e Jean Cocteau viu no cinema a mídia perfeita, pois permitia a expressão do inconsciente.
Se era esse o objetivo do surrealismo, da mesma forma, Lynch seria um surrealista. Não surpreendentemente, ele definiu os cineastas e os pintores dessa escola como seus mentores na arte de criar imagens estranhas. Como resultado, o sucesso e a estranheza de Eraserhead deram impulso à carreira de Lynch. Desde então, em sua obra como um todo, o artista adotaria um estilo inegavelmente surrealista.
A influência de Kafka
Em síntese, Eraserhead reflete as angústias de um homem que vê sua vida recomeçar, bem como as mudanças pelas quais ele passa. Enquanto metáfora, reflete a vida do próprio Lynch em tempos de incerteza, depois que seu filho nasceu, quando ele era jovem e tentava se afirmar na área artística. Com efeito, mostra a viagem psicológica do personagem Henry Spencer (Jack Nance), vítima de uma mudança interna que deixa suas emoções à flor da pele. Algumas cenas tocam no horror e no bizarro, mas sem deixar de lado o senso de humor macabro do cineasta.
Desse modo, o filme evoca A Metamorfose (1915) de Franz Kafka — que Lynch pensara em adaptar — em sua mescla de realismo e domesticidade fantástica. É clara a relação com a obra literária. Na segunda parte de Eraserhead, as cenas do bebê-monstro (filho de Henry) agravam o sentimento de opressão psicológica, com toques do grotesco, outro traço do estilo de Lynch. Conforme Wolfgang Kayser, o grotesco é o mundo que se torna estranho. Em outras palavras, o que era familiar aos nossos olhos se revela inesperadamente sinistro, mas foi o nosso mundo que mudou. E esse mundo, herdeiro da tragédia grega, parece absurdo.

A metamorfose na mitologia grega
Assim como a lagarta vira borboleta, muitos personagens lendários podem mudar de forma. Sobretudo nos mitos gregos, mas não apenas, a metamorfose é tema de várias histórias. Vítima de sua rival, a deusa Atena, logo após vencê-la num desafio de tecelagem, a jovem Aracne torna-se uma aranha fiandeira. Na Odisseia, Ulisses ora é um jovem viril, ora é um velho mendigo, e a bruxa Circe faz homens virarem porcos.
De todos, a princípio, é Zeus quem mais se altera. Faz isso principalmente por amor, como explica Richard Buxton, mas também por vingança. No entanto, às vezes é difícil afirmar se a metamorfose, nos antigos mitos, de fato ocorre ou se é figurativa. Por exemplo, Atena voou na forma de um pássaro ou “como um pássaro”?
Nas artes visuais, de acordo com Buxton, há três modos de representar a metamorfose.
1- Ilustração, quando vários animais seguem uma deusa, nos quais ela parece se transformar.
2- Completa, quando Zeus vira chuva de ouro, cisne, touro, águia…
3- Híbrida, categoria à qual pertence o Minotauro, por exemplo.
O autor também buscou seres meio homem, meio animal fora da religião grega — no Oriente Próximo, na Índia e no Egito, bem como nas tradições judaica e cristã. No caso da Metamorfose de Kafka, a mudança é completa: Gregor Samsa acorda como um inseto enorme. Já no filme de Lynch, é híbrida, de modo a dar vida ao grotesco. Enfim, desde os antigos mitos, o tema em questão é elemento-chave de muitas de nossas histórias.
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Referências
A metamorfose 1915), de Franz Kafka.
O grotesco (1986), de Wolfgang Kayser.
O cinema limítrofe de David Lynch (Tese, PUC/SP, 2003), de Rogerio Ferraraz.
Masters of Cinema: David Lynch (2010), de Thierry Jousse.
A arte do cinema: uma introdução (2013), de David Bordwell e Thompson.
Forms of Astonishment: Greek Myths of Metamorphosis (2017), de Richard Buxton.
“Relaciones entre pintura y cine en David Lynch: The Art Life (2016)“, de Ángel Justo Estebaranz (2018).
Como citar este artigo? (ABNT)
REIS FILHO, L. A metamorfose em Eraserhead, de David Lynch, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/a-metamorfose-em-eraserhead-de-david-lynch/. Acesso em: 04/07/2022.