Horror cósmico em O Massacre da Serra Elétrica

Nos anos 1970, uma das grandes expressões do horror surgiu do calor do Texas. No momento em que a esperança de um mundo melhor ficava para trás, O Massacre da Serra Elétrica (1974) expôs muito do pessimismo e do mal-estar da sociedade americana. Na ressaca da contracultura, Tobe Hooper criou um universo violento que reduz os seres humanos à sua insignificância. Nesse sentido, seu filme é um dos melhores exemplos do horror cósmico. Mas, afinal, que tipo de horror é esse? Através da linguagem cinematográfica, vamos entender a visão sombria de H. P. Lovecraft (1890-1937), que deu base para diversas produções nas últimas décadas, inclusive a obra-prima de Hooper.

O horror cósmico segundo Lovecraft

Em seus contos de horror, Lovecraft criou um universo infinito em tempo e espaço no qual os seres humanos ocupam um lugar insignificante. Nas suas palavras, “é a relação do homem com o cosmos – isto é, com o desconhecido – que me desperta a centelha da imaginação criativa. A postura humanocêntrica me é impossível, pois não partilho da miopia primitiva que engrandece a terra e ignora o pano de fundo” (JOSHI, 2013). Com essas reflexões, o autor pôs na mesa pela primeira vez a essência do seu pensamento filosófico e estético, que chamou de cosmicismo.

Para o biógrafo S. T. Joshi, o cosmicismo é uma perspectiva não só metafísica, mas também estética. É, ao mesmo tempo, a consciência e a expressão da nossa insignificância no cosmos. Ele se expressa, principalmente, por meio da miniaturização dos seres humanos no universo. Já a consciência dessa condição – à qual chegam os personagens, tanto quanto os leitores – leva ao horror cósmico. Foi o interesse de Lovecraft pela astronomia que lançou as bases de sua visão sinistra.

O horror cósmico nasce, portanto, do choque com o que há de misterioso ou incompreensível no mundo que nos cerca. Em virtude de seu apelo, tornou-se um gênero da literatura fantástica, cujos principais temas são o medo do desconhecido, o universo hostil, a ideia de destino e o existencialismo. Essa emoção se manifesta em várias mídias, seja em filmes, quadrinhos ou games. Exemplo emblemático, conforme veremos, é O Massacre da Serra Elétrica.

No universo, o caos é a regra

Em princípio, O Massacre da Serra Elétrica é obra do “cinema selvagem” dos anos 1970, de potência bruta capaz de dar náuseas. Contudo, por trás da fachada grotesca, Tobe Hooper explora a linguagem cinematográfica de modo inegavelmente subversivo. Assim, traz à tona a ideia perturbadora de que os seres humanos, suas vidas e seus dilemas nada significam na vastidão de um universo caótico e hostil.

Conforme vão subindo os créditos de abertura, vemos close-ups de manchas solares. Então, a imagem de um sol vermelho escaldante se sobrepõe. A massa em erupção, cuspindo fogo de forma aleatória, é nosso primeiro vislumbre do universo de Hooper em larga escala. Não se trata de um universo de paz e serenidade, mas de caos e fúria. A cor escarlate do sol transmite raiva, tema constante em todo o filme.

Universo caótico: o tatu atropelado.

A trilha de Hooper e Wayne Bell dá um tom ainda mais perturbador, pois carece de melodia e reforça o quão insignificante o homem é. Os rugidos apocalípticos são ecos dissonantes, um alvoroço de sons feios que se misturam. Revelam a falta de equilíbrio, sanidade, razão e ordem no cosmos, tanto quanto as erupções solares. A cena inicial do filme já deixa claro que, nesse universo, o caos é a regra. Vemos o corpo de um tatu atropelado, de barriga para cima no asfalto escaldante. É o caos corrompendo a ordem que a estrada, enquanto símbolo do engenho humano, representa.

Somos animais na fila do abate

Assim que vemos os protagonistas pela primeira vez, sabemos que O Massacre da Serra Elétrica não terá rostos conhecidos. Não por acaso, já que astros simbolizam um cosmos estelar, isto é, a ordem na constelação cinematográfica. Pelo contrário, aqueles homens e mulheres anônimos são gente como a gente. Habitam um universo onde coisas terríveis de fato acontecem, assim como na vida real.

Já nos primeiros minutos, Hooper rebaixa certo padrão de decência que existia desde os primórdios da sétima arte. Afinal, por norma do cinema hollywoodiano, as expectativas do público giravam em torno de heróis e vilões, resolução de conflitos e a derrota do mal. Subvertendo todas essas normas e extrapolando no gore, o cineasta cria um abismo que leva ao horror cósmico lovecraftiano.

Em certos momentos, o filme ressalta a vastidão do cosmos e a insignificância dos seres humanos. Essa é uma postura crítica, já que faz do grupo de jovens gado na fila do abate. Em outras palavras, eles não passam de animais minúsculos correndo a esmo, incapazes de entender que ocupam um plano muito maior e terrivelmente macabro. É certo que temos uma sensação de ordem em nossas vidas. Hooper então escancara, sem pudor, que em nada diferimos dos outros animais. Assim como qualquer ser vivo, somos reféns de um universo que se desdobra aleatoriamente.

A existência é aleatória e sem propósito

Muito acima dos personagens há o espaço sideral, sóis, galáxias. E estas “entidades” cósmicas não se importam com o fato de cinco adolescentes estarem prestes a morrer. Nossos erros, ações e escolhas, como das minúsculas formigas de visão funicular, têm efeitos imprevisíveis, principalmente num universo de caos, erupções e raiva. Você pode acordar de manhã e pegar a estrada sem ao menos imaginar que, antes do sol se pôr, morrerá nas mãos de um canibal doido (MUIR, 2002, p. 337).

A estrutura do filme e as cenas de morte, conforme ocorrem, acentuam a sensação de existência aleatória e sem propósito em um universo caótico. Esse é o caso da morte de Kirk (William Vail), por exemplo. Sem ilusões hollywoodianas, heroísmo, redenção ou quase-fuga, ela é apenas brutal.

Kirk leva um golpe de martelo, seu corpo desaba e tem espasmos. Leatherface dá um segundo golpe, então acabou. A cena dura poucos segundos. Novamente, a equação é clara: o rapaz não passa de um bicho nas mãos de um açougueiro, nada além disso. Sua morte não tem sentido, em qualquer escala.

Seus amigos têm o mesmo fim. Assim que chegam ao rancho dos canibais, são caçados e mortos, um por um. Não há progressão narrativa, o filme não avança rumo ao clímax – não há luta do bem contra o mal – nem sequer dá informações sobre o assassino. Nada que possa nos confortar.

A esperança também morre

Em síntese, O Massacre da Serra Elétrica mostra um universo que não ousamos contemplar. O céu não se importa conosco enquanto seres pensantes. É certo que todos nós vamos morrer um dia, ao passo que a Terra vai continuar em órbita. Ainda que sejamos caça, animais na fila do abate ou expostos às atrocidades mais imagináveis, o céu não protestará. Esse é o horror cósmico na sua essência.

Hooper criou um universo sem ordem ou esperança. Assim, lembra como é vago o nosso antropocentrismo. Do mesmo modo, em sua época, Lovecraft desprezou a “postura humanocêntrica” como sinal da “miopia primitiva que engrandece a terra e ignora o pano de fundo”. Similarmente ao seu conto “A Sombra sobre Innsmouth”, O Massacre da Serra Elétrica une o gótico regional à visão sombria do horror cósmico. Com efeito, o universo caótico, a miniaturização dos seres humanos e sua insignificância no cosmos fazem ponte com essa postura metafísica e estética.

Assim como em Stranger Things, diversas outras obras utilizaram ideias e temas lovecraftianos. Conheça diversas delas em nosso especial de horror.

*Este texto é a versão adaptada de um trabalho que o autor apresentou ao Grupo de Pesquisa em Cinema da Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação), em 2019. A versão completa foi publicada em livro, que consta nas referências.

Referências

“O Massacre da Serra Elétrica (1974) como narrativa lovecraftiana”, de Lúcio Reis Filho, em Estudos de Cinema: Retrospectiva e Perspectivas (2021).

The Palgrave Handbook of the Southern Gothic (2016), de Susan Castillo Street e Charles L. Crow.

Horror: a thematic history in fiction and film (2002), de Darryl Jones.

Horror films of the 1970s (2002), de John Kenneth Muir.

“Crawling celluloid chaos – H.P. Lovecraft in cinema” em Necronomicon – The Journal of Horror and Erotic Cinema, v. 1 (1996), por Andy Black.

Horror – The Aurum Film Encyclopedia, v. 3 (1996), de Phil Hardy.

Leia mais

O Massacre da Serra Elétrica: gótico no Texas

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Horror cósmico em O Massacre da Serra Elétrica, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/o-horror-cosmico-em-o-massacre-da-serra-eletrica/. Acesso em: 04/12/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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