Eu Sou a Lenda: uma nova espécie de vampiros

Eu Sou a Lenda (1954), de Richard Matheson, é um exemplar das histórias de vampiro e do gótico suburbano. Das obras de horror e ficção científica dos anos 1950, é importante por criticar o conservadorismo político, a classe média norte-americana e os riscos de uma guerra total. O enredo põe o personagem principal em um cenário pós-apocalíptico, depois que uma guerra nuclear destruiu a civilização como a conhecemos. Obra influente, gerou ao longo do tempo não só versões para o cinema, mas também em quadrinhos. Vamos descobrir o legado da obra de Matheson e seu impacto!

O gótico, da Europa ao Novo Mundo

Subgênero das histórias de horror, o gótico suburbano floresceu nos Estados Unidos do século XIX, onde ganhou características próprias. Antes de mais nada, devemos lembrar que há diferenças entre a literatura gótica do Velho e do Novo Mundo. Sem dúvida, foi o passado medieval europeu que deu ao gênero seus principais temas, cenários e características. Mas esse imaginário teve que se adaptar nos EUA, devido à falta de laços com essa tradição.

Com efeito, suas histórias deixaram de lado os castelos medievais e os remotos vilarejos ingleses, e o gótico americano passou a explorar temas igualmente americanos. Em primeiro lugar, o medo da bruxaria, do paganismo e do demônio, as cidades-fantasma e os casarões coloniais. Posteriormente, as paisagens urbanas noturnas, armazéns, motéis, estacionamentos vazios e outros cenários da cultura pós-industrial. Assim como os bairros de classe média, áreas de aparente paz e normalidade. Nesse sentido, com seus cenários, personagens e questões sociais, o “horror nos subúrbios” sugere que as casas, famílias ou vizinhanças mais “comuns” têm algo a esconder. Em outras palavras, por mais calmo e tranquilo que um lugar pareça, ele estará sempre a um passo de um evento dramático, até mesmo sinistro.

Repensando os vampiros: Eu Sou a Lenda

Ao longo do tempo, os subúrbios se converteram em geografia literária na ficção de horror norte-americana. Pode-se dizer que um dos seus fundadores é Richard Matheson, principalmente em três livros: Eu Sou a Lenda (1954), The Shrinking Man (1956) e A Stir of Echoes (1958). O primeiro é uma história de horror e ficção científica que se passa nos anos 1970, na Los Angeles devastada por uma epidemia.

Refletindo sobre o contexto da Guerra Fria, Eu Sou a Lenda traz ideias como o fim do mundo por uma praga e o último homem. Nessa história, o escritor norte-americano explora a luta pela sobrevivência de um personagem que se vê em um mundo novo e assustador. Os vampiros são agora a espécie dominante e ele, o último homem, não passa de uma relíquia do passado. Assim, a obra traz para o tempo presente as tradicionais histórias de vampiro, que vêm do folclore europeu e da literatura gótica. Faz isso ao incluir a ideia da epidemia e propor explicações científicas para o mito.

Eu Sou a Lenda, de Richard Matheson

A força do vampiro é que ninguém acreditará nele”. Muito obrigado, Dr. Van Helsing, pensou Neville, pousando o seu exemplar de Drácula” (Matheson, 1984, p. 14).

Ambientado em 1976, Eu Sou a Lenda segue os passos de Robert Neville depois que a guerra nuclear espalhou uma epidemia e destruiu a sociedade. Como resultado, muitos morreram – incluindo sua esposa e filha – e os sobreviventes viraram vampiros. Neville vive em sua casa, à base de um gerador e cercado de alho. Durante o dia, investiga a doença, à qual é imune, estudando sangue e células, e vaga pela cidade à caça de mantimentos e vampiros, os quais mata um a um enquanto dormem. À noite, o jogo vira. Os monstros cercam sua casa e o ameaçam, exigindo que saia. Com essa metáfora, Matheson põe em xeque os valores da classe média e da própria sociedade americana. Eu Sou a Lenda é de 1954, mas dá para sentir os revolucionários anos 1960 virando a esquina, bem como a paranoia social da Guerra Fria.

O legado de Eu Sou a Lenda na cultura pop

Eu Sou a Lenda inspirou vários filmes. A Noite dos Mortos-Vivos (1968) é um exemplo importante, conforme admitiu seu diretor George Romero. A obra-prima de Romero, que trouxe à vida os mortos-vivos contemporâneos, é, sem dúvida, um marco do cinema de horror. Além disso, há três versões da história de Matheson para as telas: Mortos que Matam (1964), A Última Esperança da Terra (1971) e I Am Legend (2007). Nos quadrinhos, a minissérie de Steve Niles e Elman Brown se destaca. Vamos conhecê-la.

Richard Matheson’s I Am Legend (1991) é muito fiel ao original. Niles não só usa trechos do livro, como também fecha a história de forma semelhante, coisa que as adaptações para o cinema não fizeram. Eu Sou a Lenda termina com a captura de Neville – não pelos vampiros que o atormentavam, mas por uma nova espécie que aprendeu a controlar os efeitos da doença. Por fim, o homem encara a morte de alma lavada e conclui ter sido, ele próprio, um mal maior. Isso porque, nas suas palavras, ele foi “um espectro invisível” que “deixou como prova da sua existência os corpos sem sangue dos seus entes queridos”. Da prisão, olha para aqueles que herdarão a Terra e conclui: “Eu sou a lenda”.

Características da adaptação

Parece difícil pensar em novas versões de uma história sem grandes mudanças de enredo. Mas, em entrevista ao I Am Legend Archive, Niles deixou clara a sua intenção de preservar ao máximo a fonte literária. Essa ideia certamente fez da sua versão de Eu Sou a Lenda uma obra fiel ao texto original. Ainda assim, há uma série de influências do cinema e da cultura pop, sobretudo na arte de Brown.

O uso do preto-e-branco, por exemplo, é uma boa escolha para dar à história um tom sombrio. De fato, esse recurso aumenta o contraste. O próprio George Romero optou pela monocromia em A Noite dos Mortos-Vivos numa época em que estudos de cinema como a Hammer e a AIP Gothics já usavam cores. Como resultado, vemos um ambiente plano e tenebroso, perfeito para o gótico suburbano. Robert Kirkman e Tony Moore também usaram esse recurso em Os Mortos-Vivos (2003-), quadrinhos que homenageiam a obra do cineasta.

Além disso, nota-se um estilo mais realista nos traços de Brown. A figura de Robert Neville, pelas suas mãos, lembra muito Charlton Heston (1923-2008). Ator norte-americano, foi ele quem deu vida ao personagem no filme de 1971. Nesse sentido, Richard Matheson’s I Am Legend toma como base não só a obra literária, mas também o cinema. A relação entre os quadrinhos e a literatura abre muitas portas.

Sobre o autor

No momento em que a sua versão de Eu Sou a Lenda chegou às bancas, em 1991, Steve Niles era um dos mais principais escritores de quadrinhos de horror. Naquele momento houve um boom dos quadrinhos, na aba da especulação crescente sobre os itens para colecionadores. Com a expansão do mercado e o surgimento de lojas especializadas, também surgiram autores independentes preocupados com a liberdade criativa. Muitos desses artistas deram as costas às grandes editoras e abriram suas próprias empresas. Por consequência, nasceram editoras menores inspiradas no underground libertário, que ofereciam aos artistas um maior grau de controle sobre seu trabalho.

Niles iniciou a carreira com publicações independentes, e só entrou para a indústria dos quadrinhos após criar sua própria editora, a Arcane Comix. Posteriormente, o escritor publicou, editou e adaptou diversas antologias para a Eclipse Comics, sendo um dos seus primeiros trabalhos Richard Matheson’s I Am Legend. Seu currículo inclui Criminal Macabre (1990); 30 Dias de Noite (2002), que também é uma história de vampiro; Dark Days (2004); Spawn, entre outros títulos. Niles fez parceria com grandes nomes do horror, como Clive Barker, Rob Zombie e Todd McFarlane, um dos fundadores da Image.

Referências

“Obrigado, Dr. Van Helsing: a ficção vampírica na adaptação de Eu Sou a Lenda e em 30 Dias de Noite, de Steve Niles” (Revista De Letra em Letra, 2016), por Lúcio Reis Filho.

A última esperança sobre a Terra (Eu Sou a Lenda), de Richard Matheson. Francisco Alves Editora, 1984.

Gothic: transmutations of horror in late twentieth century art (1997), de Christoph Grunenberg.

Richard Matheson’s I Am Legend (1991), de Steve Niles e Elman Brown.

Desvendando os quadrinhos (2005), Scott McCloud.

Entrevista com Steve Niles, em: The I Am Legend Arquive.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Eu Sou a Lenda: uma nova espécie de vampiros, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/eu-sou-a-lenda-uma-nova-especie-de-vampiros/. Acesso em: 07/05/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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