Bloodline e além: religião às avessas em Hellraiser

Hellraiser: Bloodline (1996) é o título mais ambicioso da franquia, ao passo que tentou expandir sua mitologia fantástica e juntar elementos prévios. Esse quarto filme se preocupa em explicar o Cubo das Lamentações (a Caixa para invocar os Cenobitas) e sua evolução, em três épocas distintas. A história se estende por quatrocentos anos: começa na época de sangue e violência que foi a França pré-revolucionária; então pula para a Nova York dos anos 1990; e, finalmente, chega ao século XXII.

No século XVIII, o fazedor de brinquedos Phillip Lemarchand cria uma Caixa que é capaz de abrir as portas do Inferno. Cabe aos seus descendentes, John e Paul Merchant, salvar o mundo desse perigo – nos séculos XX e XXII, respectivamente. A fim de conectar as linhas do tempo, o filme usa tanto a Caixa quanto o ator Bruce Ramsay, que viveu os três personagens de uma mesma linhagem. Do outro lado estão os Cenobitas, demônios que veem o mundo de cima, como os deuses da mitologia grega.

A fúria dos Cenobitas

Se o foco de Hellraiser III: Inferno na Terra (1992) está em Pinhead, em Bloodline ele fica atrás das cortinas, nas rédeas de tudo o que ocorre. Quem ocupa seu lugar é Angelique (Valentina Vargas), cujo nome é uma inversão da ordem estabelecida e nos faz lembrar que os Cenobitas são “demônios para uns, anjos para outros”. Ela é a grande vilã até Pinhead reassumir seu posto no segmento futurista, na metade do filme. Ao lado do Líder dos Cenobitas estão os Gêmeos, cujas cabeças se fundem como um yin yang retorcido; uma fera mutante, meio-homem, meio cão, com bocarra cheia de dentes; e Angelique.

Com o propósito de fazer da Terra um imenso portal para o Inferno, os Cenobitas surgem como vilões imperialistas em Bloodline. Lembram os caprichosos deuses gregos de Fúria dos Titãs (1981), que movem os seres humanos como peças de um tabuleiro de xadrez, e assim definem seu destino. “O Jardim do Éden. Um jardim de carne” – está é a visão de Pinhead sobre a Terra. O Líder dos Cenobitas e seus demônios anseiam pela dominação da humanidade, mas seus métodos variam.

Angelique fará de tudo para manter seus reinos infernais intactos. É força sexual que seduz os homens e os atrai para a morte, como uma Sirena. Pinhead, por outro lado, um agente da dor e do sofrimento, quer abrir o portal de um vez por todas. Se nos primeiros filmes os Cenobitas não são exatamente maus, agora eles são o Diabo encarnado. Essa palavra, para a religião cristã, significa personificação do Mal e inimigo de Deus. No plural, é sinônimo de seres maléficos, sejam “demônios” ou “espíritos”.

Filosofia lovecraftiana em Bloodline

No quarto filme, Pinhead não só representa a inversão do princípio religioso, como também verbaliza o cerne da filosofia de H. P. Lovecraft (1890-1937). De uma estação espacial, como um deus grego no topo do monte Olimpo, o Líder dos Cenobitas contempla a imagem da Terra em um monitor. Então, oferece uma visão sombria da existência: “Glorioso, não é? As criaturas que andam na superfície, sempre buscando a luz, sem nunca poderem ver os incontáveis oceanos de escuridão além delas”.

Pinhead evoca o cosmicismo, isto é, uma postura metafísica e estética de Lovecraft. Em outras palavras, é a consciência da insignificância da humanidade na vastidão do cosmos e a expressão da mesma, que miniaturiza os seres humanos nos abismos de espaço-tempo. O cosmicismo vem da rejeição do escritor às alegações metafísicas da religião. No ensaio A Confession of Unfaith (1922), ele escreveu que “um mero conhecimento das dimensões aproximadas do universo visível é suficiente para destruir, para sempre, a noção de uma divindade pessoal cuja atenção despende, em sua inteireza, com a humanidade insignificante”. Para Lovecraft, que deixou de lado qualquer crença na divindade como algo cientificamente injustificado, restou a consciência de que a humanidade está a sós no universo.

Pinhead e a rejeição da religião

A percepção de Pinhead de que “há mais humanos vivos neste momento do que em toda a sua lamentável história”, bem como a ideia de que as pessoas compartilham “a mesma esperança vã na luz”, ilustram a frieza e a indiferença do Líder dos Cenobitas. De acordo com essa visão, os seres humanos são micróbios insignificantes em um universo hostil, que não se importa com o que fazem ou não. Se todos os mitos forjam uma conexão vital entre os deuses e os seres humanos, foi essa conexão que Lovecraft buscou subverter. Igualmente, essa perspectiva eleva Pinhead ao papel de um Grande Ancião, da classe de abominações cósmicas dos contos do escritor.

Na maioria dos filmes de horror, ou Deus está ausente, ou seu poder foi usurpado. Em Bloodline, assim que encontra Pinhead pela primeira vez, Merchant exclama: “Oh, meu Deus”. O Líder dos Cenobitas então rebate: “Pareço alguém que se importa com o que Deus pensa?”. Esta frase resume o arco narrativo que vinha se construindo desde Hellraiser: Renascido do Inferno (1987). Nas palavras de Douglas Cowan, esse é “o medo de os deuses a quem rezamos ou fazemos oferendas, cujos altares adornamos com serviços e sacrifício, cujas regras seguimos e cujas promessas cumprimos, simplesmente perderem importância”.

A polarização do Bem contra o Mal, de novo

Conforme vimos, há momentos na franquia Hellraiser em que a polarização do bem e do mal é evidente. Ainda que as fronteiras não sejam sempre tão claras em Bloodline, no estilo “Não há Bem, não há Mal” de Hellraiser III, a oposição é claramente definida. “A escuridão é onde você me encontrará”, diz Pinhead em tom sombrio. Por fim, na tradicional luta entre os opostos, Merchant cria uma armadilha e destrói a estação espacial, enviando o demônio de volta para onde veio. O que alimentava a armadilha era energia solar. Portanto, a luz supera as trevas, reforçando assim a dualidade universal.

O tom moralista a partir do quinto filme

Depois de Bloodline, a franquia sofreu grande reformulação. Os novos filmes se remetem aos primeiros só na superfície, mas há, do quinto em diante, alguns pontos em comum: o tom moralista, as histórias isoladas e o tempo não-linear. Vemos Pinhead e os Cenobitas em poucas cenas, na maioria das vezes em flashes de alucinação. Os vilões não passam de psicopatas que caem nas mãos dos Cenobitas, e não recebem nada além da morte cruel. Pinhead se revela sempre no fim, depois que suas vítimas encontram a danação, e seus discursos ganham um tom moralista ausente no conceito original. Por sua vez, os Cenobitas menores são meros matadores silenciosos, figuras sinistras que antecipam as mortes. Foi o quinto filme, Hellraiser: Inferno (2000), que definiu esse padrão de enredo para os próximos títulos, basicamente a perseguição do assassino e a solução do mistério.

Os Cenobitas como guardiões morais

Os subsequentes Hellraiser: Hellseeker (2002) e Hellraiser: Deader (2005) repetem a estrutura onírica do predecessor, com personagens que enfrentam seus demônios e sofrem estranhas alucinações. Nesse último, Pinhead persegue um culto que desafiou a morte, matando todos os seus membros impiedosamente com ganchos e correntes. O Líder dos Cenobitas se define como “o redentor”, então repete sua famosa frase “Eu sou o caminho”.

Depois, vieram Hellraiser: Hellworld (2005) – um filme auto-referencial, tendência da era pós-Pânico (1996) – e o filme de baixo-orçamento Hellraiser: Revelations (2011). O tom moralista desses últimos filmes quebra as convenções básicas da franquia. Pinhead não é uma entidade amoral, isto é, um árbitro imparcial, mas um guardião moral que julga a sentença dos pecadores. O último filme da franquia até então, Hellraiser: Judgement (2017), tem esse mesmo tom.

Referências

Dicionário de símbolos (2020), de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.

“Demons to some, angels to others: eldritch horrors and hellbound religion in the Hellraiser films”, por Lúcio Reis Filho. Em: Divine Horror (2017).

I Am Providence: The Life and Times of H.P. Lovecraft, v. 1 (2013), de S. T. Joshi.

The Hellbound Heart: A Novel (2009), de Clive Barker.

Religion and Horror on the Silver Screen (2008), de Douglas Cowan.

Horror Films of the 1980s (2007), de John Kenneth Muir.

The Hellraiser films and their legacy (2006), de Paul Kane.

Nightmare Movies: Horror on Screen since the 1960s (2001), de Kim Newman.

“Crawling Celluloid Chaos – H.P. Lovecraft in Cinema”, por Andy Black. Em: Necronomicon – The Journal of Horror and Erotic Cinema (1996), v. 1.

The Hellraiser Chronicles (1992), de Stephen Jones. Entrevista com Clive Barker.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Bloodline e além: religião às avessas em Hellraiser, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/bloodline-e-alem-religiao-as-avessas-em-hellraiser/. Acesso em: 02/05/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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