O dualismo em Dark: o que Adam e Darth Vader têm em comum?

Conforme vimos em “as três faces de Jonas“, este personagem é tanto o herói quanto o vilão de Dark. No episódio “Achados e perdidos” (2019), o sombrio Adam revela seu plano logo após dizer à sua versão mais jovem quem realmente é. Temos aqui a grande virada do enredo (ou uma delas), similarmente à de Darth Vader em O Império Contra-Ataca (Star Wars: Episode V – The Empire Strikes Back, 1980). Afinal, a tradicional luta da luz contra as trevas (o dualismo da religião judaico-cristã), está muito presente na série da Netflix. Mas, além da representação do lado sombrio, o que Adam e Darth Vader têm em comum?

O arquétipo do vilão

Adam é o arquétipo do vilão, isto é, um homem torturado e desfigurado, de feições assustadoras, trajes pretos e presença marcante. Lembra alguém? Em 2018, Darth Vader foi eleito o maior vilão de todos os tempos pela Empire. A julgar pelo nome da revista, o resultado não poderia ser outro. Brincadeiras à parte, Darth Vader é o vilão mais icônico e reconhecível do cinema. Sua imagem, inegavelmente, empresta muito a Adam.

Como sabemos, todo vilão tem um plano maligno. Assim como Darth Vader, Adam quer criar uma “nova ordem”. No quinto episódio da segunda temporada, ele explica seu plano e a conspiração por trás da sociedade secreta Sic Mundus. Além disso, tenta converter o menino Jonas, ou seja, trazê-lo para o seu lado. Da mesma forma que Darth Vader tenta fazer de Luke seu aliado no lado sombrio da Força. O pacto faustiano também indica o dualismo em Dark, pois deixa claro quem é bom e quem é mau.

O plano de Adam e a filosofia de Nietzsche

Imagem do vilão de Dark. O assustador Adam, com a face desfigurada e sobretudo preto de gola-alta, olha para frente com ar de superioridade.

Em seu discurso, Adam evoca o niilismo. Nietzsche usou este termo a fim de caracterizar a descrença em um futuro glorioso da civilização, em contraste com a ideia de progresso. Com ele veio a “morte de Deus”, ou seja, a negação da crença em todos os valores éticos, estéticos e sociais da tradição.

“Estamos criando um mundo novo, sem tempo, sem Deus”. O jovem Jonas pergunta o que isso significa, e seu algoz continua: “Significa que o que os homens têm adorado há milênios o Deus que mantém tudo unido (…) nada mais é que o próprio tempo. Não uma entidade que pensa e age. Mas uma lei física com a qual se pode barganhar tão pouco quanto o próprio destino. Deus é o tempo. E o tempo não tem misericórdia. Nós nascemos e a nossa vida já está correndo (…). A morte está sempre à nossa frente. Nosso destino não é nada além de uma cadeia de causa e consequência. Na luz e na sombra”.

Em resumo, a concepção tradicional de Deus já não tem valor para Adam. Ele evoca, portanto, a “morte de Deus”. O conhecimento substituiu o ideal religioso e o destino do homem é mera causalidade.

Na história do pensamento moderno, a filosofia de Nietzsche surgiu como ponto alto de um processo de “descristianização”, que teve início com o filósofo francês René Descartes (1596-1650). O niilismo nietzschiano buscou a superação dos princípios metafísicos tradicionais do Cristianismo, com o propósito de levar a novos valores “afirmativos da vida”. Para isso, no entanto, é necessário um sacrifício. Deve-se “matar o touro”, isto é, livrar-se das amarras da tradição. Analogamente, vale lembrar que Jonas é uma representação de Teseu no labirinto, o herói grego que matou o Minotauro.

O dualismo cristão

A aparente contradição de Adam, que defende a “morte de Deus”, é sua íntima relação com o cristianismo. Não apenas com a simbologia (o seu nome, em inglês, significa “Adão”, o primeiro homem), mas também com a tentativa de reestabelecer a ordem e reatar-se com certa tradição.

Adam pretende criar uma utopia (o paraíso) por meio de artifícios diabólicos. O plano revela suas intenções, visto que o personagem foi construído como um vilão clássico. Com roupas pretas e feição medonha, Adam é uma representação do Mal encarnado tanto quanto Darth Vader. Mas, enquanto “homem superior”, seria ele uma deturpação do pensamento de Nietzsche, do qual se utiliza para fins egoístas?

Adam e Eva (a versão mais velha de Martha), juntos, reforçam o dualismo, pois são duas faces da mesma moeda. Maquiavélicos, eles evocam a moral religiosa e querem levar seu plano até as últimas consequências. Ambos vivem nas sombras, manipulando os demais personagens e a si próprios, em suas versões mais jovens. Quem se opõe ao mal que representam é Cláudia, o “Diabo Branco”, que viaja no tempo com o objetivo de detê-los.

Ao mesmo tempo que reforça o dualismo, no entanto, Dark subverte os princípios da religião cristã. Sua base é o niilismo nietzschiano, bem como as ideias de tempo cíclico, destino e determinismo.

Referências

Diálogo com Nietzsche: ensaios (2010), de Gianni Vattimo.

Dicionário básico de filosofia (1991), de Hilton Japiassu e Danilo Marcondes.

Darth Vader é eleito vilão nº 1 pela Empire Magazine.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. O dualismo em Dark: o que Adam e Darth Vader têm em comum?, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/o-dualismo-em-dark/. Acesso em: 16/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

Uma resposta

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