Hellraiser II: uma visão original dos demônios

A palavra de ordem nos anos 1980 era “franquia”, ao passo que filmes de horror consagrados ganhavam novos títulos. Esse é o caso de Hellraiser: Renascido do Inferno (1987), de Clive Barker. Muitas sequências giravam em torno dos vilões – verdadeiros ícones de adoração popular –, e deixavam de lado elementos previamente estabelecidos. Em contraste, ainda que fizesse parte da tendência, Hellbound: Hellraiser II (1988) trouxe uma narrativa mais complexa, muito além do drama familiar sobrenatural. O retorno de Pinhead e dos Cenobitas não só deu continuidade à história do primeiro filme, como também expandiu o universo fantástico de Barker. Fez isso com diversas alusões à mitologia, a fim de aprofundar sua representação original do Inferno e dos demônios. Vamos conhecê-las!

Descida ao Inferno

Hellraiser II é como uma jornada às profundezas do Hades, o mundo inferior da mitologia grega. A história começa logo em seguida ao primeiro filme. Depois de tudo o que passou, Kirsty (Ashley Lawrence) acorda no leito de um sanatório. Quando o Doutor Channard (Kenneth Cranham) a entrevista, ela conta as causas do seu trauma – ou seja, o horror inominável dos Cenobitas. Seu relato interessa o médico, que, além de diretor-geral do sanatório, é perito em demonologia.

Mais do que isso, Channard tem obsessão pelo Cubo das Lamentações – a Caixa para invocar os demônios. Ele dedicou sua vida à relíquia macabra, que vê como meio de obter poderes ilimitados. Posteriormente, com seus saberes ocultos e o sangue de várias vítimas, o Doutor faz Julia (Claire Higgins) renascer. (Madrasta de Kirsty, Julia se corrompeu e acabou sendo vítima de seu amante, tio da garota). Enquanto isso, a misteriosa Tiffany (Imogen Boorman) encontra a Caixa. Paciente do sanatório, a garota muda resolve o quebra-cabeça e atrai os Cenobitas, contra a vontade de Channard.

A origem dos Cenobitas explicada

Seguindo a tendência das franquias, Hellraiser II expande a história do filme original. Revela, por exemplo, que os Cenobitas já foram humanos e que sua transformação deve-se aos poderes do deus das trevas Leviatã. Desde então, eles se tornaram figuras grotescas. Fazendo tudo em nome do deus onipotente e onipresente, pois são servos do Inferno e agentes da sua vontade.

Essa backstory deu aos Cenobitas mais profundidade. Também os distinguiu dos verdadeiros vilões do filme, isto é, o Doutor Channard, personificação dos nossos medos da medicina, e a vingativa Julia. É a mulher quem dá ao Doutor acesso ao mundo inferior, onde ele tenta concretizar seus desejos de dominação. Leviatã, que faz de Julia a Rainha do Inferno é quem converte Channard em Cenobita. Como resultado, ele fica ainda mais cruel – uma extensão de quem foi na Terra.

De daimon a demônio

Historicamente, o termo “demônio” vem de daimon e do verbo daiein (“distribuir”), do grego antigo. De acordo com fontes clássicas, daimon era o poder de controlar o destino dos indivíduos. Assim sendo, um daimon seria tanto agente do destino quanto o próprio destino personificado. Para os gregos, os daimones formam uma pluralidade pouco definida de seres sobrenaturais sem nome.

Posteriormente, a cristianização do termo grego deu a ele conotação negativa e reduziu os daimones ao status de espíritos maléficos. Na mentalidade cristã, os demônios são inegavelmente maus e se relacionam à matéria, ao pecado, à corrupção e ao corpo, em contraste com os valores religiosos. Essa é, em síntese, a história de Satã, que desafiou Deus por ciúme e foi expulso do Céu com seus anjos.

O que são os Cenobitas?

Hellraiser II segue a premissa do primeiro filme, de tal forma que é possível relacionar os Cenobitas ao termo daimon. Afinal, controlam o destino de quem os invoca. Ao mesmo tempo, tem relação íntima com o pecado, o corpo e tudo que contraria os valores cristãos. Entretanto, eles não seriam exatamente maus e sim amorais. Em contraste, o maligno Doutor Channard representa a passagem dos daimones a demones ou demônios, ou seja, da cosmologia filosófica à moralidade.

Obra de Barker, a concepção original dos demônios de Hellraiser deve muito à estética do movimento splatterpunk, às expressões extremas da cena fetichista e às subculturas de BDSM e body-piercing dos anos 1970 e 1980. Assim sendo, não há nos Cenobitas os simbolismos tradicionais da imagem de Satã: os traços de serpente, os cascos e a cabeça de bode, a pele vermelha, os chifres e as asas etc. Os primeiros dois filmes da franquia não só desafiam essa imagem, como também subvertem outra ideia profundamente enraizada no pensamento cristão: o Diabo como personificação do Mal.

O Inferno em Hellraiser II

Igualmente, a dimensão infernal que vemos pouco se assemelha ao submundo de fogo e piche do pensamento cristão. Na verdade, suas imagens não tem páreo com quaisquer outras já vistas. Paul Kane aponta uma distinção importante: quando morrem, os personagens do filme não descem automaticamente para esse Inferno. Isso porque ele não é um mundo de punição por uma vida de pecado. Pelo contrário, mesmo que tenham sido puras e virtuosas, como prega o cristianismo, ainda assim poderão ser vítimas desse Inferno. Conforme vimos, tudo o que precisam fazer é abrir a Caixa.

O Inferno em Hellraiser II é um vasto labirinto com reinos intermediários, onde as almas experimentam suas dores e prazeres pessoais. Essa visão traz ecos do artista holandês M.C. Escher, cujas “arquiteturas impossíveis” têm precisão matemática. A dimensão infernal se mostra como um mundo de sonho, cuja grandeza aterrorizante e arquitetura ciclópica fariam H. P. Lovecraft se orgulhar. Esse Hades não é o epítome do caos, mas da ordem. Nele, não há cavernas, nem chamas; há corredores, escadarias e nuvens escuras no horizonte. Contudo, ele segue a regra de que o tormento deve ser eterno.

A luta do Bem contra o Mal

Contudo, o clímax de Hellraiser II é a tradicional luta do Bem contra o Mal. No Inferno, a revelação de quem Pinhead realmente foi o faz voltar à forma humana, perdendo assim seus poderes. A versão Cenobita de Channard então invoca lâminas cirúrgicas e tentáculos lovecraftianos que brotam das suas mãos. Tais armas agem sob controle de sua mente, assim como os ganchos e correntes de Pinhead. Com sede de poder, o monstruoso Doutor as usa para matar o Líder dos Cenobitas e seus capangas. Por fim, as heroínas (Kirsty e Tiffany) lutam com os vilões (Julia e Channard) e vencem.

Referências

Dicionário de símbolos (2020), de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.

“Demons to some, angels to others: eldritch horrors and hellbound religion in the Hellraiser films”, por Lúcio Reis Filho. Em: Divine Horror (2017).

The Hellbound Heart: A Novel (2009), de Clive Barker.

Horror Films of the 1980s (2007), de John Kenneth Muir.

The Hellraiser films and their legacy (2006), de Paul Kane.

Nightmare Movies: Horror on Screen since the 1960s (2001), de Kim Newman.

“Crawling Celluloid Chaos – H.P. Lovecraft in Cinema”, por Andy Black. Em: Necronomicon – The Journal of Horror and Erotic Cinema (1996), v. 1.

The Hellraiser Chronicles (1992), de Stephen Jones. Entrevista com Clive Barker.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Hellraiser II: uma visão original dos demônios, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/hellraiser-ii-uma-visao-original-dos-demonios/. Acesso em: 04/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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