Nada de Novo no Front: o soldado como herói trágico

Nada de Novo no Front (All Quiet in the Western Front, 2022) reflete sobre os horrores e a brutalidade da Primeira Guerra Mundial (1914-18). Indicado ao Oscar, o filme de Edward Berger é adaptação de um dos grandes romances sobre o tema: Im Westen nichts Neues (1929), do alemão Erich Maria Remarque. Com narração em primeira pessoa, o texto evoca o confronto sob vários ângulos, ou seja, dos horrores hediondos, das banalidades do cotidiano e da camaradagem fervorosa. Faz isso com vivacidade cativante, em prosa a um só tempo explícita e sutil, ambientada naqueles quatro anos de carnificina. Berger não só adaptou o livro de forma brilhante, evocando sua atmosfera, tons e cores, como também deu uma dimensão épica a Paul Bäumer enquanto “herói trágico”, representação comum em obras modernas.

ATENÇÃO: ESTE ARTIGO CONTÉM SPOILERS!

As adaptações de um clássico antibelicista

Conforme os impérios e estados-nações europeus se voltavam uns contra os outros, os anos de 1914 a 1918 assistiram a brutalidade nunca antes vista. A disputa era para decidir quem de fato dominaria a Europa no século XX. Por fim, a luta por supremacia não levou a uma vitória decisiva; deixou cicatrizes abertas e um número enorme de mortos. Esse é o pano de fundo de Nada de Novo no Front.

Levaria quase um século até que o livro de Remarque ganhasse uma versão pelas mãos de um conterrâneo seu. Berger é, portanto, o primeiro alemão a adaptar a história, cujo autor foi, ele próprio, um soldado do império ferido na Primeira Guerra. Até então, seu retrato franco e realista do conflito teve três versões para as telas: primeiramente em 1930, no filme vencedor do Oscar de Lewis Milestone; depois para a CBS, no telefilme de Delbert Mann de 1979; e a de Berger, para a Netflix.

A cargo de um elenco e uma equipe excepcionais, a nova releitura é arrebatadora e visualmente impactante. Assim como o livro, o filme mostra os horrores da guerra e a tragédia de uma geração condenada. Reforça, então, uma mensagem esmagadora: o verdadeiro inimigo não são os soldados em campo, nem sequer os tiros, as bombas ou tanques, mas a própria guerra e seus arquitetos. É desse modo que Berger apresenta para o público contemporâneo o clássico antibelicista de Remarque.

A ideia de heroísmo nos filmes de guerra

Conforme declarou ao AV Club, Berger cresceu assistindo a filmes de guerra americanos e britânicos; em síntese, jornadas heroicas das nações protagonistas que libertaram a Europa do fascismo. De fato, filmes de guerra como O Resgate do Soldado Ryan (1998) e A Conquista da Honra (2006) retratam os soldados como heróis. Mas, segundo o cineasta, na Alemanha não há orgulho na história militar do século XX. Pelo contrário, “há um sentimento de vergonha, culpa, horror, terror, responsabilidade (…)”, observou. “Está no meu DNA (…) contar essa história. E fazer um filme especificamente alemão”.

De acordo com Luci Firth, há algo primitivo em nossa relação com os heróis dos filmes de guerra. Afinal, enquanto arquétipo, definem que somos e espelham quem esperamos ser. Nas tradições grega, romana e judaica, os feitos heroicos de Hércules, Enéias e Davi corriam de boca em boca. No último século, o cinema perpetuou a tradição dos antigos contadores de histórias; meio dominante e poderoso, é capaz de produzir imediatismo e realismo. Os filmes de guerra falam de heróis e seus feitos exemplares, mas o arquétipo mudou com o tempo. Se há sessenta anos o soldado era bom e virtuoso, tornou-se um personagem mais próximo ao das tragédias gregas; é mortal, falível e torturado, em contraste com os ideais míticos que definem o herói.

Os horrores da guerra em Nada de Novo no Front

O ano é 1917. O idealista Paul Bäumer (Felix Kammerer) tem dezessete anos, mas finge ser maior de idade para se alistar no exército imperial alemão junto de seus amigos, todos muito novos. Fazem isso por influência do professor ultranacionalista que insuflou noções patrióticas romantizadas, bem como o desejo de aderirem à gloriosa cruzada para conquistar a França. Os jovens recrutas cantam e marcham alegremente até o front, onde a dura realidade da guerra logo se impõe; a alegria então dá lugar ao horror e os garotos acordam para o pesadelo das trincheiras.

A sequência que abre Nada de Novo no Front é deslumbrante: vemos a floresta enevoada, o céu pelos ramos das árvores, uma raposa e seu filhote; de repente, o estrondo dos canhões quebra a harmonia. A guerra invade a natureza. A vista aérea mostra o morro coberto de cadáveres. Os soldados então saem das trincheiras e adentram no turbilhão de fumaça, poeira e lama. Alguns tombam ao menor contato com a luz do dia; outros lutam desesperadamente para abater ou estocar os inimigos antes de terem esse mesmo fim. Imagem e som pintam um quadro caótico, repleto de paralelismos.

Logo que o filme começa, fileiras de máquinas de costura soam como balas; a geada de uma manhã de inverno paira feito mortalha sobre os corpos na relva; e as paisagens devastadas, atoleiros de lama, sangue e ossos, encarceram os soldados nas trincheiras, fundindo-os em um todo homogêneo.

A tragédia de Paul Bäumer

Paul é um personagem trágico, pois evoca pena e medo. O garoto se vê no horror da guerra com pouco equipamento e treinamento mínimo; jovem e ingênuo, sequer faz ideia que seu uniforme pertenceu a um outro soldado, agora morto. Não fosse o conselho de um veterano, ele não sobreviveria ao primeiro dia de combate. Depois, assim como todos que resistem nesse pesadelo em vida, Paul abre mão da sua individualidade. Afasta-se aos poucos de tudo que o define, isto é, dos valores, da educação, da cultura, das ambições, do apego à família. Sua vida se resume ao instinto básico de sobrevivência.

Em sua forma rudimentar, o arquétipo do herói é o do indivíduo que enfrenta as forças do mal. Gavin S. Davie relaciona o heroísmo à coragem, à bravura e ao altruísmo, bem como ao dever cívico e à negligência para com o próprio bem-estar. Tais atributos se combinam para formar um ato heroico.

Não por acaso, o heroísmo conduz ao sacrifício pessoal. A princípio, essa é a intenção de Paul. A própria ideia do soldado abnegado que luta em terras distantes (nesse caso, o norte da França), presente em Nada de Novo no Front, é uma convenção dos filmes de guerra. Na cena em que os tanques atacam, por exemplo, a luta desse herói é a de Davi contra Golias. O que diferencia Paul de seus colegas é sua capacidade de sobreviver por mais tempo, mas para ele também não há glória heróica; seu fim é igualmente trágico.

A morte voluntária

O arco narrativo principal corta para a história de Matthias Erzberger (Daniel Brühl), o político alemão que pressionou as autoridades francesas e negociou com elas o cessar-fogo – que levou à rendição incondicional de seu país. Assim, Berger põe o horror das trincheiras em contraste com as reuniões dos líderes políticos e militares, regadas a vinho e iguarias em salões luxuosos. Além disso, cria efeito de suspense em relação ao destino dos soldados e à contagem regressiva para a paz.

À meia hora do armistício, o comandante ordena a invasão de um território francês; faz isso a fim de que seus homens voltem para casa como heróis. Paul entra em “modo de combate” e luta ferozmente nessa investida final, mas morre atravessado por uma baioneta a menos de um minuto do cessar-fogo. O soldado já não tinha nada a perder, a não ser a própria vida, da qual aparentemente abriu mão.

Esse ato supostamente heroico evoca o destino do guerreiro Ájax; tomado pela ira e despojado de sua honra, o herói grego quer vingança e pretende trucidar seus inimigos. Ele tem uma personalidade solitária e se apoia na crença de que uma vida sem honra não merece ser vivida. Por fim, recorre ao suicídio; de acordo com outra versão, foi atravessado por uma espada. Nesse sentido, a morte voluntária seria um ato de libertação do sofrimento interior.

O sacrifício e a rendição incondicional

Paul encontra seu destino trágico. Assim, Nada de Novo no Front questiona a própria ideia de heroísmo em seu sentido clássico. O desfecho não existe no livro (nem na própria Guerra). Sua função é evocar algo pior do que a derrota: a ideia de que o sacrifício, se desconsiderado, leva à rendição incondicional. Essa é a moral dos soldados alemães. Por fim, a paz que se obteve à custa de enormes sacrifícios converteu-se em trégua, e os rumos da Europa seriam definidos em outro conflito.

De acordo com Fred Kaplan, o que Berger faz é lembrar os espectadores que a Primeira Guerra não terminou em 1918. Na verdade, a rendição alemã enfureceu os militares e o futuro líder político Adolf Hitler, que passaram a propagar o mito do “facada pelas costas”, isto é, a ideia de que a Alemanha teria vencido não fossem os sociais-democratas e os judeus. Remarque obviamente não poderia prever nada disso, já que seu romance antecede a ascensão e Hitler e a Segunda Guerra Mundial.

A representação do herói muda ao longo do tempo, assim como mudam a cultura e a sociedade. Nos filmes de guerra nota-se que a imagem do herói virtuoso deu lugar ao soldado falível, exausto e torturado, moral e fisicamente. É nesse sentido que Paul Bäumer evoca os horrores da guerra, bem como a vergonha, a culpa e a responsabilidade. A sua tragédia é a dos milhões de mortos no conflito. Em tempos de tensão geopolítica no Leste Europeu, com a invasão da Ucrânia pelas forças russas e uma nova aliança se formando, Nada de Novo no Front é um clássico de atualidade e urgência inquestionáveis.

Referências

“All Quiet on the Western Front” (Toronto International Film Festival Inc., 2023), crítica de Jane Schoettle.

“Why the latest adaptation of All Quiet On The Western Front still matters” (AV Club, 29/10/2022), por Jack Smart. Em: https://www.avclub.com/edward-berger-film-interview-all-quiet-western-front-1849717540.

“How Netflix’s All Quiet on the Western Front Deviates From the Book – and WWI History” (Slate, 04/11/2022), por Fred Kaplan. Em: https://slate.com/culture/2022/11/netflix-all-quiet-western-front-book-movie-history.html.

“A morte do mito de Ájax” (Revista Estética Semiótica, v. 6, n. 2, 2016), por Leonardo Oliveira.

A New World Was Born: Europe’s Fraternal War: 1914-1918, por 20th Century Institute (2015).

“The Hero Soldier: Portrayals of Soldiers in War Films” (University of South Florida, 2011), dissertação de Gavin S. Davie.

Dicionário de mitologia grega e romana (2011), de Pierre Grimal.

“Defining American Heroes: Analyzing the Metamorphosis of the War Hero in Twentieth Century War Films Using Joseph Campbell’s, ‘Hero’s Journey'” (2002), por Luci Firth.

Arte poética, de Aristóteles.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Nada de Novo no Front: o soldado como herói trágico, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/nada-de-novo-no-front-o-soldado-como-heroi-tragico/. Acesso em: 21/11/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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