O Ataque dos Cães: do Oeste lendário ao enigma bíblico

Kodi Smit-McPhee como Peter em The Power of the Dog. Kirsty Griffin/Netflix © 2021

De sua estreia em Veneza, até chegar aos cinemas e à Netflix, o novo filme de Jane Campion ganhou aplausos e nomeações ao Oscar. Ambientado no Oeste americano na década de 1920, O Ataque dos Cães (The Power of the dog, 2021) revisita e renova o western. A partir das convenções desse gênero, cria um duelo de opostos cheio de simbolismo, com visões de mundo conflitantes e desejos humanos irrefreáveis. Os contrastes moldam e definem os personagens demasiado humanos, cuja vida num Lugar Nenhum entre montanhas desenterra traumas e ressentimentos, assim como a vida no Oeste marca a ferro o caráter de cada um deles, com chagas profundas. Os dramas e os conflitos familiares levam ao desfecho enigmático do filme, que faz alusão ao título e evoca a metáfora dos cães, de um salmo bíblico.

De volta ao Oeste

Uma fábula do Oeste americano, o filme O Ataque dos Cães se passa em 1925, mais de três décadas depois que o Censo declarou o fechamento da fronteira dos Estados Unidos. A crítica Manohla Dargis definiu esse original da Netflix como a “evisceração deslumbrante de um dos mitos fundamentais” do país. Afinal, é tanto um conto do Oeste, mundo ensolarado de cowboys e espaços abertos, desolação e travessia, quanto uma releitura do gênero western.

Com estilo visual ousado, Jane Campion desnuda o Oeste e seu povo com panorâmicas aos moldes de John Ford, tomadas aéreas e atenção aos detalhes. Assim, desenha com precisão esse mundo mítico, de poeira rodopiante e tipos característicos, do caubói ao agente funerário. Num quadro de beleza singular, os vaqueiros seguem pela estrada em fila indiana, em sincronia quase perfeita. Em contraste, a cineasta não se importa em chocar o público com imagens cruas e violentas.

O espírito do caubói

O personagem central do filme O Ataque dos Cães é Phil Burbank (Benedict Cumberbatch), um sujeito arrogante que passou a vida como vaqueiro em Montana. Tão seco e austero quanto o lugar, planície árida cercada por montanhas, ele é o estereótipo do homem do Oeste. Não leva desaforo para casa, toca banjo, raramente toma banho e castra bois com as mãos nuas, segurando a lâmina entre os dentes.

Cumberbatch como Phil Burbank.

Na verdade, tanto Phil quanto seu irmão George (Jesse Plemons) mantiveram o espírito de caubói vivo no rancho de seus pais. Durante o dia, eles domam cavalos e tocam a criação em um mundo de homens rudes; à noite, recolhem-se em seu casarão grande e sepulcral, cenário típico do gótico.

Os irmãos Burbank: barbárie e civilização

A trama de O Ataque dos Cães gira em torno dos irmãos Burbank, que, a princípio, encarnam a clássica oposição do western: barbárie versus civilização. Filme após filme, década após década, essa oposição ordenada e eventualmente dividiu os homens em campos de guerra: vaqueiros contra índios, bandidos contra homens da lei, Ocidente contra Oriente.

De fato, os irmãos são polos opostos. Phil é alto, esguio e se veste como um verdadeiro caubói, de chapéu e calças sujas. George é atarracado, gordinho e gosta de usar terno. Phil fala demais, por vezes de forma estoica como um clássico personagem do western. Sua língua sempre afiada desfere ataques ácidos contra o irmão, com quem é particularmente cruel. Por sua vez, George prefere o silêncio; fala o mínimo possível, inclusive diante das críticas ou provocações de Phil.

Rose e Peter: estranhos no ninho

As coisas pioram depois que George se casa com Rose (Kirsten Dunst). Recém-chegados ao mundinho dos Burbanks, a mulher viúva e seu filho adolescente, Peter (Kodi Smit-McPhee), quebram a dinâmica dos irmãos. Phil vê Rose como uma oportunista, o que diz mais sobre ele próprio, sobre a desconfiança que sente em relação aos outros,  principalmente as mulheres.

Decerto, Campion constrói seu filme a partir do choque de opostos. O rosto pálido de Rose, sempre iluminado, brilha em contraste com as trevas do casarão, onde passa a viver com o marido e o cunhado. Seu filho é um garoto quieto e estudioso, de gostos peculiares, que todos subestimam. Notadamente queer e sensível, Peter subverte o que então se esperava de um “homem” naqueles tempos. De acordo com Phil, em rompantes de preconceito, o garoto deveria “ser mais homem”. Com seus sapatos brancos, Peter contrasta com o universo masculino sombrio, de caubóis rudes, ignorantes e sujos de terra.

O Ataque dos Cães na literatura

O filme de Campion é adaptação do romance de 1967 de Thomas Savage, homem gay cuja obra foi aclamada pela crítica. Savage criou The Power of the Dog com base nos anos em que viveu e trabalhou, ele próprio, em um rancho em Montana. No posfácio de uma edição do livro, Annie Proulx identificou “algo doloroso, solitário e terrível do Oeste” que o escritor capturou para sempre nas suas páginas.

O livro de Savage antecede em décadas a tragédia Brokeback Mountain, de Proulx. Nesse romance, adaptado para o cinema em 2005, por Ang Lee, os trabalhadores rurais Jack e Ennis se descobrem gays no verão de 1963, enquanto criam ovelhas. Os dois fazem sexo e se apaixonam, ao mesmo tempo que acreditam ser “invisíveis”. E, de fato, eram, aos olhos da sociedade.

O que ódio esconde

Nas palavras de Savage, Phil “detestava o mundo tanto quanto o mundo o detestava”. Logo, ele é o cordão de maldade na história, que Cumberbatch nutre com virtuoso autocontrole. Em olhares e gestos, Campion e seu elenco revelam o quão profundo é o ódio de Phil, bem como o preço que esse ódio cobra. Vemos a maldade – que deforma seu rosto, bem como o de Rose –, mas também a ternura. Isso porque, se por um lado a viúva faz sua casca endurecer, Peter a quebra feito ovo. Então, dá mostras de uma outra faceta do homem do Oeste, que Phil guarda a sete chaves.

Peter Confronta Phil.

Peter traz à tona a devoção por Bronco Henry, um caubói que morreu muito tempo antes. Em seu íntimo, Phil sofre com a solidão e as memórias desse “homem de verdade”, que ainda ama – e o sentimento parece romanticamente intenso. Nesse sentido, mais do que uma tragédia, O Ataque dos Cães é uma história de libertação; inclusive para o western, gênero que a diretora renova de forma brilhante.

Final: o salmo bíblico e o “ataque dos cães”

Tido como um fraco pelos vaqueiros, Peter mostra-se moralmente forte e capaz de ver o que o próprio Phil não vê. No momento em que ambos contemplam o horizonte, só o garoto avista a enorme sombra em forma de cão nas montanhas. O animal, portanto, surge nessa cena como símbolo. Mas é no desfecho que vem uma sugestão do título original “The Power of the Dog”, que traduz-se como “o poder do cão”. Em casa, Peter lê o salmo 22 da Bíblia: “Livrai-me da espada, livra a minha vida do poder do cão”.

De que modo podemos interpretar o salmo, dentro do filme? Logo de início, Peter se torna objeto de chacota e sofre os maiores tormentos nas mãos de Phil. Depois, eles se juntam numa improvável relação de camaradagem, talvez mais pela necessidade de sobrevivência do garoto sensível, que faz flores de papel, num universo hostil de “homens de verdade”. Phil age como seu mentor e protetor no mundo adulto, mas também nutre por ele alguma curiosidade. De fato, para certa tradição cristã, Deus confiou o homem à guarda do cão, a fim de que o protegesse de encontros com o Diabo.

Mas a figura do cão também é maléfica no cristianismo. A própria palavra, na língua portuguesa, por exemplo, é sinônimo de Diabo. Não por acaso, o filme associa o animal a Phil, do qual Peter se liberta no fim trágico, após descobrir seu segredo. No entanto, em termos de narrativa, o desfecho é ambíguo e enigmático. Assim como Phil, não sabemos ao certo o que acontece. É Peter quem sabe – prova disso é o sorriso insolente que esboça enquanto fuma um cigarro –, mas ele fica em silêncio. Campion opera no campo da sugestão, dando ao filme e a esse personagem uma aura misteriosa.

Referências

Dicionário de símbolos (2020), de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.

The Power Of The Dog Title Meaning & Final Bible Verse Explained (ScreenRant, 03/12/2021).

“‘The Power of the Dog’ Review: Wild Hearts on a Closed Frontier” (The New York Times, 30/11/2021), por Manohla Dargis.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. O Ataque dos Cães: do Oeste lendário ao enigma bíblico, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/o-ataque-dos-caes-do-oeste-lendario-ao-enigma-biblico/. Acesso em: 19/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

2 respostas

  1. Que texto e interpretaçao impecáveis! À altura da grandiosidade da obra.
    Parabéns, Lucio!

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