O Massacre da Serra Elétrica: gótico no calor do Texas

Na cultura americana, o título de O Massacre da Serra Elétrica (The Texas Chain Saw Massacre, 1974) virou sinônimo de maldade e declínio moral. Isso porque toca em tabus constantes ao longo do tempo, não só da sua época. Por exemplo, o canibalismo, as famílias monstruosas e a noção de que a sociedade desce ralo abaixo. Além da visão de mundo pessimista, que nasceu com o fim das utopias da contracultura, a ambientação também é um ponto alto desse cult classic. O calor e as condições miseráveis do Texas rural certamente ajudaram a fazer dele um verdadeiro gótico sulista. Por consequência, o filme de Tobe Hooper entrou para o rol do horror como um dos mais marcantes do gênero.

Talvez, a filosofia e o horror cósmico de H. P. Lovecraft (1890-1937) sejam motivos para O Massacre da Serra Elétrica se destacar. Em princípio, poucos diriam que essa é uma obra “lovecraftiana”. Contudo, Black e outros autores chamam a atenção para a paisagem desértica do interior, com seus lugarejos isolados e seitas macabras. Nela, jovens suburbanos idealistas, porém mimados, são vítimas de um mundo adulto maligno e hostil. Além de buscar seus antepassados na literatura e nas telas, veremos que essa obra-prima do horror de fato traz diversos temas dos contos de Lovecraft.

O gótico sulista e o lar do Massacre

O choque de dois mundos é frequente na literatura estadunidense. Palco de muitos dramas, o Sul daquele país é, sem dúvida, uma região de “encruzilhadas e fronteiras”, sejam elas territoriais ou de gênero, classe, raça e sexualidade. Historicamente, conforme notam Street e Crow, o “gótico sulista” revela a presença inquietante de todos que não se encaixam nesse mundo, ou vivem às suas margens.

Edgar Allan Poe (1809-1849), Tennessee Williams (1911-1983) e Flannery O’Connor (1925-1964) foram expoentes do gênero, cujo palco é o Sul dos EUA. Entre seus principais temas estão os tipos excêntricos; os cenários abandonados, em ruínas; e os eventos grotescos que evocam alienação, pobreza, crime ou violência. Posteriormente, autores como Lovecraft e o cinema beberam desse imaginário.

O choque de dois mundos

Desde Maníacos (1964), de Herschell Gordon Lewis, o “Sul Profundo” aparece nas telas como uma estufa de crime e violência. Nesse sentido, O Massacre da Serra Elétrica tem relação com os góticos regionais dos anos 1970 e 1980. Podemos citar Amargo Pesadelo (1972), Quadrilha de Sádicos (1977), O Confronto Final (1981) e Colheita Maldita (1984). Tais filmes subverteram as normas e as restrições do cinema hollywoodiano, o requinte técnico e mesmo o bom gosto. Em termos de narrativa, puseram dois mundos em choque: gente da cidade versus povo do interior.

Ainda que nem todos sejam obras de horror, esses filmes partilham um certo ponto de vista: veem com maus olhos quem vem da cidade grande. A base para esse tipo de narrativa é o Morro dos Ventos Uivantes (1847), de Emily Brontë (1818-1848). Mais tarde, Lovecraft também criaria em sua obra poderosos góticos regionais. Esse autor, do Norte, tinha forte preconceito com gente do campo. De tal forma que fez da regressão ao primitivismo um dos seus temas principais. Em muitos dos seus contos, tipos urbanos se deparam com o povo do interior, visto como estranho e atrasado.

Regressão ao primitivismo

Embora seja uma obra de ficção, O Massacre da Serra Elétrica se faz passar por “um dos mais bizarros crimes nos anais da história americana”. De acordo com a narração inicial, o que vemos é um relato verídico da tragédia de um grupo de jovens. Como a gangue do Scooby-Doo, eles viajavam num furgão pela zona rural do Texas, em agosto de 1973. Mas a vida real não é um desenho da Hannah Barbera. Depois que encontram o vilão mascarado, eles são inesperadamente perseguidos e mortos.

Conforme definiu Hooper, essa é a história de “loucos retardados que cruzaram a fronteira entre os homens dos animais”. A saber, o filme trata da regressão à barbárie primitiva e do choque da “civilização” com a natureza. Nesse sentido, a família de maníacos seria a degeneração final dos pioneiros que, nos primórdios, sucumbiram à região selvagem. Um dos seus membros é Leatherface (“Cara-de-Couro”), o psicopata com a máscara de pele humana. Ele é um caçador, mas, ao invés de animais, caça pessoas com sua motosserra (contrariando a tradução em português, a serra não é elétrica).

A família de Leatherface

Os excêntricos canibais surgem como paródia da típica família de sitcom. O ganha-pão (Jim Siedow) é frentista do posto de gasolina. De peruca e avental, um vaidoso Leatherface representa a Mãe. O cabeludo rebelde é Hitch (Edwin Neal), o filho adolescente. O patriarca é o Vovô (John Dugan), figura zumbificada e decrépita que parece morta, até finalmente despertar para o banquete.

Eles trabalhavam num matadouro, mas, desde que a mecanização custou seus empregos, passaram a vender carne para churrasco. A casa de abate, onde vivem, virou um negócio de família. E a caça às presas humanas, com o propósito de obter sua matéria-prima, leva ao massacre a que se refere o título. Assim, Hooper dá à trama uma lógica materialista, isto é, a da privação econômica. Não por acaso, depois que O Massacre da Serra Elétrica se tornou um clássico do horror, as famílias monstruosas viraram regra no gótico sulista. Nesse gênero, elas são versões decadentes da classe trabalhadora.

Paralelos com a obra de Lovecraft

No filme de Hooper, o lugar ermo e isolado da civilização nos faz lembrar da trama canibalesca de “Os Ratos nas Paredes (1923), de Lovecraft. Tanto quanto as cadeiras de braços humanos e os móbiles de esqueleto, troféus de Leatherface. Nele, também há ecos de outros contos do escritor, como “A gravura da casa maldita” (1920) e “A sombra sobre Innsmouth” (1931). No primeiro, o viajante acha no interior da Nova Inglaterra um velho casarão cujo dono é um canibal. No segundo, um forasteiro chega à cidade do título, lar em ruínas de uma raça híbrida de homem e peixe.

A ideia é que gerações de gente estranha vivem nas áreas mais distantes, onde se agarram a crenças ocultas e cometem barbaridades. Muito presente em histórias desse tipo, o canibalismo fica sempre a cargo daqueles que vivem fora da civilização. Tais elementos refletem medos profundos e ancestrais, enterrados no coração dos EUA. Enfim, esses são temas lovecraftianos que deram base à franquia O Massacre da Serra Elétrica. Do filme original às sequências, dos derivados ao remake de 2022.

*Este texto é a versão adaptada de um trabalho que o autor apresentou ao Grupo de Pesquisa em Cinema da Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação), em 2019. A versão completa foi publicada em livro, que consta nas referências.

Referências

“O Massacre da Serra Elétrica (1974) como narrativa lovecraftiana”, de Lúcio Reis Filho, em Estudos de Cinema: Retrospectiva e Perspectivas (2021).

The Palgrave Handbook of the Southern Gothic (2016), de Susan Castillo Street e Charles L. Crow.

Horror: a thematic history in fiction and film (2002), de Darryl Jones.

Horror films of the 1970s (2002), de John Kenneth Muir.

“Crawling celluloid chaos – H.P. Lovecraft in cinema” em Necronomicon – The Journal of Horror and Erotic Cinema, v. 1 (1996), por Andy Black.

Horror – The Aurum Film Encyclopedia, v. 3 (1996), de Phil Hardy.

O morro dos ventos uivantes (1847), de Emily Brontë.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. O Massacre da Serra Elétrica: gótico no calor do Texas, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/o-massacre-da-serra-eletrica-gotico-no-texas/. Acesso em: 30/10/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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