O som do didjeridu no cinema: entre o sagrado e o estranho

Instrumento de sopro dos aborígenes australianos, o didjeridu ocupa um lugar de destaque nos mitos e lendas da Oceania. No cinema, principalmente nos filmes ambientados na Austrália, seu zumbido pulsante e hipnótico é motivo usado com grande frequência. O som característico ressoa ora com o propósito de criar um senso de estranheza – nos filmes de horror e ficção científica –, ora como representação da cultura local. Este é o caso de Priscilla, a Rainha do Deserto (1994) e Austrália (2008), por exemplo. Vamos conhecer um pouco mais sobre esse instrumento e como aparece nos filmes.

O que é o didjeridu?

As origens do didjeridu remontam ao Norte da Austrália, cujos povos originários o utilizam em cerimônias ritualísticas há milhares de anos. É, portanto, um dos instrumentos musicais mais antigos do mundo. Consiste em um galho de até 180 cm de comprimento, geralmente de eucalipto, com o talo comido por cupins. A madeira é decorada com símbolos que aludem à mitologia indígena e à cultura de cada tribo. Afinal, o didjeridu evoca o Dreamtime, isto é, da cosmovisão dos aborígenes australianos.

O instrumentista, sentado no chão, toca o didjeridu com a vibração dos lábios, variando seu timbre com a boca e a língua. Com a respiração nasal, é capaz de manter o som por longos períodos. De acordo com Anthony Baines, o didjeridu produz um “caleidoscópio de timbres”, ao mesmo tempo que imita os sons de pássaros e outros animais. Assim, funciona como acompanhamento rítmico e pontua os movimentos de quem dança. Ao longo do tempo, seu som inconfundível integrou a trilha sonora de diferentes filmes.

Viagem ao Centro da Terra (1959)

Nessa adaptação do escritor francês Jules Verne, o músico Bernard Herrmann buscou criar a sensação de descida rumo às entranhas da Terra. Para isso, fez a orquestra tocar em registros mais graves e usou um órgão para efeito adicional.

A faixa “Mountain Top / Sunrise” traz a música-tema de forma fragmentada, junto do som de harpas. Podemos ouvi-la enquanto os protagonistas assistem ao nascer do sol, no topo do vulcão que estão prestes a descer. Já em “The Lost City / Atlantis” o órgão é o centro das atenções, desempenhando um motivo quase religioso em contraste com o tema principal.

Mas é na faixa “Giant Chameleon / The Fight” que vem o som do didjeridu. Ele surge como representação do lagarto gigante, e assim produz uma mudança de tom ligeiramente estranha. Esse segmento conclui com “The Shaft” e “Finale”: a orquestra vai aumentando a intensidade gradualmente, antes de irromper em um arranjo grandioso da música-tema.

Nós (2019) e outros filmes de horror

No cinema, o som do didjeridu tem eventualmente a função de provocar um senso de estranheza. Não por acaso, é um recurso bastante comum nos filmes de horror. O ruído orgânico dos tripods alienígenas de Guerra dos Mundos (2005) é um bom exemplo, assim como a trilha sonora de Nós (2019). Esta, pelas mãos de Michael Abels, reflete os grandes temas do filme, que põem o mundo ordinário em contraste com outro, subterrâneo.

Na música “Anthem”, um coro infantil entoa vogais aleatórias; ao mesmo tempo, ouvem-se uma batida afro-caribenha e um acompanhamento de cordas em staccato. A instrumentação não convencional da partitura inclui sons de kalimba, berimbau e didjeridu, combinados a arranjos típicos do horror. Como resultado, evoca o medo do desconhecido – por mais familiar que seja – e cria uma sensação de marcha rumo à destruição iminente e inevitável.

O didjeridu como elemento fantástico em Ten Canoes (2006)

Por outro lado, há os filmes que se preocupam em representar a cultura e a cosmovisão dos aborígenes australianos. Um bom exemplo é Ten Canoes (2006), de Rolf de Heer, que segue os passos de um jovem guerreiro em sua jornada pelo deserto. A trilha sonora inclui línguas e músicas tradicionais, bem como o som não-diegético do didjeridu.

A intenção desse filme é criar uma correspondência cultural e geográfica com o Norte da Austrália, região onde a narrativa se passa, e onde o filme foi rodado. Assim sendo, o didjeridu não é funciona meramente como um som étnico genérico. Pelo contrário, tem relação direta – e inseparável – com as vivências dos personagens. Vemos aborígenes tocarem o instrumento, ao passo que ele se conecta à história mais remota desse povo, narrada pelo filme.

No clipe acima, as imagens em preto e branco mostram aborígenes atravessando o pântano para caçar. As cenas coloridas, por sua vez, são reconstituições do passado que surgem no clímax. Em uma delas, os irmãos Ridjimiraril (Crusoe Kurddal) e Yeeralparil (Jamie Gulpilil) devem se opor à saraivada de lanças de uma outra tribo.

Esta é, sem dúvida, uma das sequências do filme em que o diretor se afasta do estilo mais realista. Enquanto dançam para evitar as lanças, os dois homens se tornam quase translúcidos, como fantasmas. A reverberação não-diegética no didjeridu ajuda a criar a sensação de que as sequências em cores remontam a um passado remoto, isto é, a um tempo mítico.

Representação da cultura aborígene

Em síntese, o didjeridu é representação sonora da cultura aborígine na maioria dos filmes ambientados na Austrália. Esse tem sido o som dominante, apesar da grande diversidade e da pluralidade das nações e culturas aborígines em todo o país, cada qual com seus próprios costumes e tradições musicais. Fora desse contexto – nos filmes de horror, por exemplo –, funciona de modo a causar medo ou estranheza.

Referências

The Oxford Companion to Musical Instruments (1992), de Anthony Baines.

“Didgeridoo in Ten Canoes”. National Film and Sound Archive of Australia. Em: https://www.nfsa.gov.au/collection/curated/didgeridoo-ten-canoes.

“Hey, what’s that sound: Didgeridoo”, por David McNamee (The Guardian, 21/09/2009). Em: https://www.theguardian.com/music/2009/sep/21/sound-didgeridoo.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. O som do didjeridu no cinema: entre o sagrado e o estranho, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/o-som-do-didjeridu-no-cinema-entre-o-sagrado-e-o-estranho/. Acesso em: 08/10/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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