Orfeu Negro: quando o mito subiu o morro

No fim dos anos 1940, o músico e poeta Vinicius de Moraes escreveu a peça “Orfeu da Conceição” com base no drama Orfeu e Eurídice, da mitologia grega. Mais tarde, a peça seria adaptada para o cinema como Orfeu negro. O professor Victor Hugo Adler nota que a peça, ainda que fosse do início dos anos 1950, aproximava-se das ideias que o Estado Novo tinha da cultura brasileira. De acordo com Adler,

“No tempo de Getúlio [vargas] se teorizou muito sobre cultura. Alguns intelectuais estiveram empenhados em discutir que rumos dar à cultura brasileira”. () “A proposta oficial do que seria uma cultura brasileira seria aquela que tomasse a cultura popular e a transformasse em algo que fosse (…) afinado com a civilização ocidental”.

Como resultado, teve início uma série de referências que Vinicius conseguiria ultrapassar ao longo de sua carreira. A peça estreou em 25 de setembro de 1956 no Teatro Municipal. Aquela foi a primeira vez que atores negros pisaram no mítico palco carioca.

A ideia de levar o mito à favela

Conforme o próprio Vinicius contava, ele leu o mito de Orfeu em Niterói, junto ao Morro do Cavalão, no momento em que uma escola de samba ensaiava. As duas coisas se misturaram, e ficou claro que o mito grego podia se passar na favela e no samba. Veio, então, o primeiro insight da sua versão de Orfeu e Eurídice. Decerto, ainda levaria mais de uma década para o projeto se concretizar. Vinicius amadureceu a ideia aos poucos, depois escreveu a peça. Posteriormente, quando procurava um compositor para a trilha musical, chamou Tom Jobim.

A partir da sua visão de uma “autêntica cultura brasileira”, Vinicius a fez subir o morro. Enfim, propôs ver a cultura a partir do morro. Esse foi um movimento espontâneo da cultura, que finalmente se abria para a contribuição dos negros, hoje tão óbvia, mas ignorada há 50 anos. Afinal, naquela época a cultura negra (africana e afro-americana) ainda não era valorizada.

Filho de um músico e de uma lavadeira, Orfeu é um sambista que vive no morro e se apaixona por Eurídice. A paixão desperta ciúmes, desejos de vingança e morte. Para Vinicius, essa é uma história positiva, pois representa a luta de um homem que, através da música, procura dar sentido à vida daquela que ama e à perda desta. A peça surgiu em tributo ao homem negro brasileiro, isto é, como reconhecimento do seu valor na cultura brasileira e das suas precárias condições de vida.

Do palco às telas

Inspirado na peça “Orfeu da Conceição”, o filme Orfeu negro (Orphée noir, no original) estreou em 1959. Coprodução de França, Itália e Brasil, ele levou a Palma de Ouro, em Cannes, e o Oscar de melhor filme estrangeiro. Também imortalizou o Rio de Janeiro no imaginário mundial. Na trama, o motorista Orfeu cai de amores por Eurídice e desce do Olimpo da favela para o inferno do asfalto em busca de sua amada.

Em 1958, O Globo promoveu um concurso para ajudar o cineasta Marcel Camus a encontrar os protagonistas de seu filme. O jornal publicou desenhos de como seriam os personagens na visão do cineasta e, em seguida, mais de mil jovens negros se inscreveram. Orfeu ficou com Breno Mello, ex-jogador do Fluminense, descoberto por um assistente de Camus ao livrar um pedestre de um assalto na Praia do Flamengo. Já Eurídice foi importada de Londres: a bailarina Gypsy Marpessa, cujo nome artístico era Marpessa Dawn.

Orfeu na mitologia grega

O mito que deu origem a Orfeu negro é um dos mais obscuros e carregados de simbolismo da mitologia grega. A mais célebre lenda de Orfeu é a da descida aos Infernos por amor à sua esposa, Eurídice.

Certo dia, às margens de um rio da Trácia, a jovem foi perseguida por Aristeu, que pretendia violenta-la. Em sua fuga, pisou em uma serpente, que a mordeu, causando a sua morte. Inconsolável, Orfeu desceu aos Infernos a fim de resgatar sua amada.

Com a sua lira, Orfeu encantava os deuses e monstros que lá viviam. Diante de tamanha prova de amor, Hades e Perséfone aceitaram devolver Eurídice, mas com uma condição: Orfeu devia sair dos Infernos sem olhar para trás. Desse modo, seguido por sua esposa, ele tomou seu rumo. Mas, quando estava prestes a ver a luz do dia, começou a suspeitar que talvez o tivessem enganado. A fim de passar a história a limpo, Orfeu olhou para trás e viu Eurídice sumir, morrendo pela segunda vez. Desesperado, o rapaz tentou voltar para procurá-la, mas o barqueiro Caronte não o deixou entrar nos Infernos. A sua única escolha, então, foi subir ao mundo dos humanos, arrasado com a sua perda.

Referências

Dicionário de mitologia grega e romana (2011), de Pierre Grimal.

“25 de setembro de 2016: Peça ‘Orfeu da Conceição’ estreia no Rio de Janeiro” (Blog Efemérides do Éfemello). Em: https://tinyurl.com/y5c6upaw.

“Inspirado na peça de Vinicius, ‘Orfeu negro’ levou o Oscar e a Palma de Ouro” (O Globo, 30 de outubro de 2013). Em: https://tinyurl.com/y3xolfpw.

“Orfeu da Conceição” (Blog Deus me Livro). Em: https://tinyurl.com/y37oml83.

Para saber mais, veja “Vinicius – O Olhar do Lirismo” no site da TV Escola: Vinicius, o olhar do lirismo.

Leia também o livro Orfeu da Conceição (2013), de Vinicius de Moraes.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Orfeu Negro: quando o mito subiu o morro, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/orfeu-negro-quando-o-mito-subiu-o-morro/. Acesso em: 02/12/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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