A Filha Perdida: qual a relação com Leda e o Cisne?

Olivia Colman como Leda em A Filha Perdida. Netflix, 2021.

Adaptação de livro da italiana Elena Ferrante, A Filha Perdida (Netflix, 2021) conta a história de uma jovem professora cuja carreira brilhante corre o risco de ser frustrada pela maternidade. O filme de Maggie Gyllenhaal nasceu de uma narrativa íntima que traduz memórias, percepções e afetos da protagonista. Drama existencial denso, toca também em convenções literárias e temas da mitologia. Sobretudo, faz alusões a “Leda e o Cisne”, poema de Yeats que reconta um mito grego sobre o estupro de uma jovem espartana pelo pai dos deuses. Com efeito, esse indicado ao Oscar se aprofunda na experiência feminina e revê o lugar da Mãe na sociedade, ao abordar as várias faces desse arquétipo.

A trama de A Filha Perdida

A Filha Perdida começa à noite, com uma figura de branco estirada na praia, à mercê da maré. Daí em diante, o filme todo é um flashback dessa tragédia aparente. A mulher em questão é Leda Caruso (Olivia Colman), professora de literatura em Cambridge, Massachusetts. Nas férias de verão da universidade, Leda aluga uma casa de praia na ficcional ilha grega de Kyopeli com o intuito de relaxar e se dedicar à produção acadêmica. Ela se deita numa chaise longue à beira-mar, põe de lado o A Divina Comédia e toma notas; então, pede um sorvete a Will (Paul Mescal), o caseiro jovem e bonito.

Leda (Olivia Colman) e Will (Paul Mescal).

O drama foca na solidão de Leda, bem como nos dilemas de sua vida pregressa enquanto mãe que busca independência e escolhe deixar as filhas. Por isso, enfatiza sua relação com mulheres mais jovens que chegam à praia, às quais confidencia as dificuldades de ser mãe. Seus laços com uma dessas mulheres giram em torno de uma boneca, até os conflitos latentes da trama virem à tona. Nesse sentido, sua relação com Will (de tensão romântica à flor da pele) e Lyle (Ed Harris), o senhorio da casa de praia, que flerta com ela, reflete estados mentais ou desejos do passado.

Os efeitos da memória

Tudo é paz e repouso, mas depois da calmaria vem a tempestade. O sossego morre na praia com a chegada de uma família farofeira do Queens, com homens atrevidos e crianças barulhentas. Quase imediatamente, Leda entra em choque com o clã de imigrantes gregos que vive na América. Mas, ao mesmo tempo, ela se compadece de sua agonia quando a menor do grupo, filha de uma jovem mãe (Dakota Johnson), some na praia. Então, ajuda a achá-la.

O efeito que a família exerce sobre Leda é, sobretudo, mnemônico. Este termo vem de Mnemósine, isto é, a personificação grega da Memória. As jovens mães despertam na mulher de quase cinquenta anos lembranças da juventude. (A própria Leda perdeu sua filha na praia, certa vez, há muitos anos). Daí em diante, vários flashbacks pontuam a narrativa e revelam suas tentativas frustradas de conciliar a criação das filhas com a vida acadêmica. Sob pressão da torre de marfim, a jovem Leda (Jessie Buckley) deixa o marido, vai embora de casa e não vê sua família pelos próximos três anos.

No tempo presente, a família de turistas faz a atenção de Leda se fixar num detalhe. Similarmente às suas meninas e a ela própria, quando criança, a filha perdida tem uma boneca que ama com todo o coração. Ao vê-la abandonada na areia, Leda furta a boneca e a esconde na casa de praia. Embora não saiba o porquê, faz dela uma espécie de troféu ou ídolo da filha perdida. Nessa história, em que passado e presente entram em rota de colisão, a boneca é um “MacGuffin” – daqueles objetos necessários para o enredo e para motivação dos personagens.

Dilemas da maternidade

Na visão de Lydia Kiesling, o cinema enfim passou a retratar, com precisão cirúrgica, traços mais sinceros e complexos da figura materna. Nesse sentido, A Filha Perdida reflete sobre a Mãe e seu lugar, ao mesmo tempo resignado e onipresente, porém de destaque, na sociedade americana. Mas, de acordo com a escritora e crítica literária, essa condição cruel é quase impossível de se retratar em sua complexidade, pois a arte americana raramente foca no que há por trás dela. Poucas vezes reconhece os cuidados, ou os incêndios que as mães lutam para apagar na vida pública e privada.

Enquanto escritora que passa boa parte do tempo em casa, Kiesling se identificou com Leda. Nas suas palavras, a maternidade é um trabalho gratificante, mas, ainda assim, é um trabalho. Por isso a personagem vive no limiar da alegria e do desespero, da nostalgia e da impaciência. E, num país como os Estados Unidos – de profunda desigualdade, sem licença remunerada, políticas assistenciais ou atendimento médico universal, cujas instituições se assentam no patriarcado branco –, tudo é mais difícil.

A atualidade de A Filha Perdida

Decerto, entre Psicose (1960), O Aniversário (1968) e tantos outros exemplos, o cinema ama as mães monstruosas. Leda em geral é rude e indelicada, mas, dessa vez, as performances brilhantes de Colman e Buckley fazem o espectador sentir na pele o seu desespero. E a atualidade do filme de Gyllenhaal é transcendente, pois estreou no momento em que as escolas ainda estavam fechadas devido à pandemia de Covid-19. O abalo nessa infraestrutura de cuidados infantis já decadente levou as mães ao limite, fazendo-as trabalharem com filhos no colo ou largarem de vez a carreira.

De fato, não se pode exigir que os filmes deem conta da experiência humana em sua totalidade, mas podemos interpretá-los à luz da época em que surgem. Nesse sentido, a imagem da mãe que se nega aos cuidados, ainda que momentaneamente, é, para Kiesling, libertadora. Reflete, ao mesmo tempo, a fantasia de ir embora e o preço desse ato, se concretizado. Depois que os turistas bagunceiros perturbam as férias idílicas de Leda, ela observa mãe e filha com dor e ternura na face, em diversos momentos.

Para Richard Brody, A Filha Perdida é uma grande conquista de uma mulher cineasta. Isso porque, em sua essência, encarna um tipo de filme que é lamentavelmente raro. Assim sendo, evidencia a grave escassez, no cinema contemporâneo, de dramas que fazem o que a literatura sempre fez: trazer a vida e os dilemas das mulheres para o primeiro plano, à luz de experiências profundas, íntimas e enraizadas.

Alusões ao mito em Yeats

O nome da protagonista de A Filha Perdida vem de “Leda e o Cisne”, poema de William Butler Yeats com inspiração nos mitos gregos. A relação não é casual, já que a personagem de Olivia Colman é uma importante professora e pesquisadora de literatura comparada. O soneto é uma das obras-primas do poeta irlandês, que o compôs em 1923 e publicou no ano seguinte. Combinando realismo psicológico com uma visão mística, Yeats descreve o estupro de Leda pela ave divina. Então, sugere que o ato de violência contra essa mulher – e mãe – causou trauma em sua filha Clitemnestra.

Yeats também alude à guerra de Tróia, cujo estopim foi o rapto de Helena, outras das filhas de Leda com Zeus. Assim como Pólux e Castor, ela é fruto do estupro em certas versões do mito. Clitemnestra, que matou seu marido Agamenon, líder dos gregos em Tróia, também teria nascido de um dos ovos de Leda.

Leda e o cisne na mitologia

Na mitologia, Zeus tomou a forma de um cisne com o propósito de estuprar a princesa espartana Leda. De acordo com algumas versões do mito, essa violência ocorreu na mesma noite em que a mulher se deitou com seu marido, o rei Tíndaro. Leda, então, pôs dois ovos, dos quais nasceram dois casais de filhos: Pólux e Clitemnestra, Helena e Castor. De acordo com várias crenças, é o cisne que põe ou choca o ovo do mundo, e que traz as crianças à existência.

Em outras versões, Helena é filha de Zeus e Nêmesis, a personificação da catástrofe. No intuito de fugir do pai de todos, a deusa virou uma gansa; mas Zeus, na forma de um cisne, teve relações com ela assim mesmo. Como resultado, Nêmesis pôs um ovo e logo o deixou para trás. Posteriormente, um pastor achou o ovo e levou-o a Leda, que o guardou dentro de um cofre. Quando Helena quebrou a casca, Leda cuidou dela como se fosse sua filha, pois era uma linda menina.

O cisne, vale lembrar, surge em vários mitos, tradições e poemas. Não por acaso, seu simbolismo percorre todo a trama de A Filha Perdida, que vem da literatura. Já no início do filme, as roupas de Leda evocam a brancura dessa ave imaculada, que é a própria luz feminina. Além disso, há ecos do mito de Nêmesis em A Filha Perdida. Assim como a deusa, Leda deixa suas filhas para trás; anos mais tarde, no período em que a trama se passa, ela furta a boneca de uma menina, e cuida dela.

Referências

Dicionário de símbolos (2020), de Jean Chevalier e Alain Gheerbrandt.

Dicionário da mitologia grega e romana (2010), de Pierre Grimal.

Leda and the Swan“, de W. B. Yeats. Em: Poetry Foundation.

Maggie Gyllenhaal’s “The Lost Daughter” Is Sluggish, Spotty, and a Major Achievement (The New Yorker, 03/01/2022), por Richard Brody.

Hollywood Loves a Monstrous Mommy. Can It Do Her Justice? (The New York Times, 07/12/2021), por Lydia Kiesling.

“The Lost Daughter” Review: Gyllenhaal’s Take on Ferrante’s Novel Is So Electric It Feels Born a Movie (IndieWire, 03/09/2021), por Jessica Kiang.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. A Filha Perdida: qual a relação com Leda e o Cisne?, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/a-filha-perdida-leda-yeats-e-o-cisne/. Acesso em: 02/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

2 respostas

  1. Muito a ser refletido sobre tantas questoes exploradas no texto. Um estudo, vários aprendizados.
    Espero ansiosa a próxima leitura e reflexao.
    Voltarei ainda outras vezes nesse texto.
    Parabéns, Lucio!

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