A lenda de Robert Johnson: o Diabo na encruzilhada

Robert Johnson dedicou sua vida à música. Nascido no estado do Mississipi em 1911, ele foi um dos maiores nomes do blues de todos os tempos. Com sua voz e habilidades de compositor e guitarrista, Johnson lançou as bases do que viria a ser o rock ‘n’ roll. De fato, não há um som de blues ou de rock que não tenha seus acordes. Sua música abriu caminho para Eric Clapton, Bob Dylan, Keith Richards e Robert Plant, só para citar alguns dos nossos heróis do rock. No entanto, não só a música fez nascer a lenda de Robert Johnson. As histórias que o cercam deram a ele uma aura mágica e sobrenatural.

Pouco sabemos sobre o homem por trás do mito. A foto de capa deste post é uma das três que existem. O Diabo na encruzilhada (2019), da Netflix, mostra que todos os dados sobre Robert Johnson vêm de pesquisas históricas. Sem dúvida, os documentos e registros orais ajudaram a reconstruir parte da vida desse artista. Mas, por outro lado, a escassez de fontes também deu origem a lendas. Antes de mais nada, vamos recontar a história que deu vida ao mito. Em seguida, vamos descobrir porque o misterioso Johnson levou a fama de músico que vendeu a alma ao Diabo.

Standin’ at the crossroads

Diziam que Robert Johnson não era um bom guitarrista. Mas, do rapaz que vivia na zona rural do Mississipi ao artista itinerante, ele conseguiu se tornar um astro do blues. Certa noite, de acordo com a lenda, Johnson sumiu e voltou tocando muito bem. Se antes não era ninguém, de repente ele estava no topo do mundo. Como ficou tão bom em tão pouco tempo? Foi esta pergunta que deu origem a uma das mais famosas lendas do rock.

Elaborada ao longo dos anos, a lenda de Robert Johnson conta que ele foi a uma encruzilhada. Lá, supostamente se ajoelhou e encontrou o Diabo, a quem entregou sua guitarra. O Diabo afinou o instrumento e o devolveu ao músico, mas tudo tem um preço. Foi assim que Robert Johnson vendeu a alma ao Diabo e se tornou o melhor guitarrista do mundo.

A tradição hoodoo

O mito da encruzilhada sempre intrigou as pessoas. De acordo com Yvonne Chireau, essa história reflete uma tradição do folclore afro-americano, o hoodoo. Conforme explica essa professora de religião, o hoodoo conta histórias de pessoas que vão até a encruzilhada. Lá, elas se deparam com entidades que oferecem algum tipo de ajuda ou conhecimento. Uma referência no assunto é a antropóloga, escritora e cineasta negra norte-americana Zora Neale Hurston (1891-1960).

Amalgama de tradições e práticas espirituais africanas, o hoodoo se desenvolveu no Sul dos Estados Unidos, onde aportou com ondas de ex-escravizados vindos do Caribe. Eles, que foram capazes de manter as crenças e os ritos de seus antepassados, puderam então transmiti-los na América do Norte. A situação era outra no continente, pois os negros que lá viviam foram obrigados a abandonar os costumes de seus povos. Assim, sua cultura e língua se perderam com o tempo. Culto sincrético, o hoodoo também inclui objetos e símbolos do catolicismo.

As artes mágicas como forma de expressão

No início do século XX, as populações negras norte-americanas viviam em um mundo impregnado de violência e com poucas opções. Naquele contexto, além de abrir várias possibilidades, o hoodoo era uma forma de terem certo controle. Ao mesmo tempo, a tradição também permitia expressar a insegurança tão presente na realidade dos afro-americanos. Em outras palavras, o tormento psicológico de sentir que um linchamento (promovido por supremacistas brancos) estava prestes a ocorrer. A sensação era de que ninguém (nenhum negro) estava seguro.

O documentário mostra como o hoodoo influenciou a obra de Robert Johnson. Letras como “Come on in My Kitchen” e “Hellhound on My Trail”, por exemplo, são cheias de alusões a essa tradição. Na época de Johnson, suas músicas falavam não só em achar poder nas artes mágicas, mas também do mundo e da realidade dos afro-americanos. Seus vínculos com o hoodoo e o uso de tais referências fortaleciam essa população, tão discriminada, segregada e, com frequência, brutalmente violentada.

Interpretações do mito

Na mitologia e na religiosidade afro-americana, tanto nos EUA quanto no Brasil, a encruzilhada tem um papel de destaque. Ela pode representar um lugar “entre mundos”, ou então uma área onde seres sobrenaturais se manifestam e fazem contato com os vivos.

Em sua jornada para se tornar um herói do rock, a história da encruzilhada pode ser metáfora do despertar de Robert Johnson. Isso porque, de uma suposta experiência sobrenatural, veio a profunda transformação desse homem, que se tornou quem realmente era ou deveria ser.

Quanto ao diabo, há quem o relacione não apenas à figura cristã de Satanás, mas também a Legba, deus trapaceiro de origem africana associado à encruzilhada. No entanto, David Evans contestou essa ideia em “Demythologizing the Blues” (1999). De acordo com esse estudioso do gênero musical, há vários problemas com o mito da encruzilhada. Em primeiro lugar, as imagens do Diabo no blues são inegavelmente familiares às do folclore ocidental. O ato de vender a alma ao Diabo, por exemplo, reflete a lenda de Fausto. Em segundo lugar, os cantores de blues sequer citam Legba ou qualquer outra divindade africana nas suas canções.

Já a ideia de mau-agouro, também presente na lenda Robert Johnson, diz muito sobre o medo que ele sentia. Afinal, o músico era um jovem negro no sul dos EUA nos anos 1920, estava sozinho à noite e, portanto, à mercê dos passantes. Vítimas de violência e racismo, Johnson e seus contemporâneos negros estavam a poucas gerações de distância da escravidão. (Nos EUA, ela foi abolida em 1865 com a 13ª emenda da Constituição americana).

O mito ainda vive

Um século depois, a lenda de Robert Johnson ainda vive. A morte aos 27 anos em 1938 o hábito de tocar música no cemitério (que também viriam a fazer parte da mitologia do rock) perpetuaram o mito. Mas será que o artista de fato teve uma experiência sobrenatural na encruzilhada? Nunca saberemos. Até hoje, pesquisadores tentam desvendar o homem por trás do mito, mas sobre ele ainda pairam inúmeros mistérios. O que sabemos é que Robert Johnson se tornou um astro do blues, lançando assim as bases do rock e influenciando gerações de artistas.

Referências

Up Jumped the Devil: The Real Life of Robert Johnson, de Bruce Conforth e Gayle Dean Wardlow (2019).

Lowcountry Voodoo: Beginner’s Guide to Tales, Spells and Boo Hags, de Terrance Zepke (2009).

Artigo de Bruce Conforth em Living Blues: The Magazine of the African American Blues Tradition (#194, 2008, p. 68-73).

“The Problem of Invisibility: Voodoo and Zora Neale Hurston”, por Wendy Dutton. Em Frontiers: A Journal of Women Studies (1993)

“Hoodoo in America”, por Zora Hurston. Em: The Journal of American Folklore (1931).

Saiba mais

A lenda de Ardra em Star Trek: A Nova Geração (Pacto com o Diabo).

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. A lenda de Robert Johnson: o Diabo na encruzilhada, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/o-mito-de-robert-johnson-o-diabo-na-encruzilhada/. Acesso em: 27/11/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

5 respostas

  1. O interessante é que o nome blues vem de devil blues, que seriam demônios que traziam tristeza, que acaba remetendo ao termo banzo do kimbundu, que indica melancolia, o filme Crossroads se inspirou no Robert Johnson, embora o protagonista seja um jovem branco interpretado pelo Ralph Macchio e que teve participação do Steve Vai, lembrei também de uma história do Chico Bento onde a avó conta sobre um cantor que fez pacto com o diabo e era o próprio Chico no flashback, não lembro o nome da história, mas a página do violeiro chamando o diabo é bem conhecida. O estigma do rock ser do diabo vem do blues.
    https://www.scielo.br/j/agora/a/bv7Hfj8LJ5mb6DwskdwmvkJ/abstract/?lang=pt
    https://pt.wikipedia.org/wiki/Banzo

  2. Curiosamente, no Brasil também existe a encruzilhada na Umbanda, vi um vídeo certa vez que a associação do Exu veio até antes da Umbanda, o nigeriano Samuel Ajayi Crowther se tornou cristão e traduziu exú como diabo, aqui o contexto foi outro, mas isso ajuda a explica a demonização pelos pentecostais e neopentecostais, vale lembra que a própria figura do diabo é um amálgama de vários deuses pagãos e até dos turcos, somando a isso, o tranca-rua é retratado como o diabo.

  3. Na verdade a história é que Robert paor ser negro descobriu o melhor ligar pra tocar seu violão sem ser perturbado .o cemitério , e lá desenvolveu um estilo próprio usando as notas bases do que seria o rock n roll, mas também sungiu com o solo slides, mostrando que o estilo não é só uma letra.

  4. Eu acho curioso como lá, o blues que era uma música regional, adotou a guitarra elétrica, era coum um bluesman viajando num trem com um amplificador, aqui houve passeata contra, mas ironicamente, havia um protótipo brasileiro, o pau elétrico, também conhecido como guitarra baiana, que até é contemporâneo (discussões sobre quem veio primeiro são bem conhecidas).

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