Até os Ossos: o canibalismo na mitologia

Uma garota sai de casa em busca da mãe, que nunca conheceu. No meio do caminho, encontra um garoto que decide acompanhá-la. Ambos vivem em condição de pobreza extrema, à margem da sociedade. Com o pé na estrada, eles partem em uma jornada pelo coração dos Estados Unidos. Sem dúvida, esta poderia ser a premissa de tantos outros road movies; exceto pelo fato de que seus protagonistas, a garota e o garoto, são canibais. O amor encontra a transgressão em Até os Ossos.

Com cenas gore e violentas, Luca Guadagnino leva às telas em seu novo filme medos profundos da sociedade americana. Isto é, da pobreza, da marginalidade e da possibilidade de o ser humano regredir na escala evolutiva, recorrendo a atos de “barbarismo primitivo”. Desses atos, um dos mais temidos é comer carne humana. Através de uma sanguinária história de amor, vamos redescobrir o canibalismo na mitologia e nas religiões de diferentes povos.

A premissa de Até os Ossos

Até os Ossos é um exemplar do gótico sulista, cujos enredos, ambientados no sul dos Estados Unidos, trazem à tona a herança violenta e traumática daquela região. A história, que se passa nos anos 1980, começa na Virgínia, onde a adolescente Maren (Taylor Russell) vive com o pai. Negros, pobres e da classe trabalhadora, eles parecem guardar um segredo. Depois que o impulso canibal da garota aflora, e ela quase devora o dedo de uma amiga, seu pai a leva para Maryland.

O pai finalmente abandona Maren assim que ela completa dezoito anos, deixando para trás apenas alguns dólares, a certidão de nascimento da filha e uma fita cassete. Ele vai embora por não saber mais como agir e por medo de que a filha não se arrependa de seus atos. Em seguida, Maren parte à procura da mãe, da qual tem poucas informações. Sem moradia fixa, a garota vaga pelas ruas como indigente e pousa em lugares abandonados. A fita contém áudios de seu pai, que relata os casos de canibalismo da filha. Maren terá aos poucos que se entender. Por fim, descobre que não é a única.

Relação com o gótico sulista

Desde meados dos anos 1960, o cinema americano passou a representar o sul dos Estados Unidos como uma estufa de violência e morte. Até os Ossos dá continuidade a essas representações, cujas origens vêm da literatura e da tradição gótica de Edgar Allan Poe (1809-1849), Tennessee Williams (1911-1983) e Flannery O’Connor (1925-1964). Tais autores são expoentes do gótico sulista, isto é, um subgênero da ficção gótica norte-americana. Dos principais temas dessa vertente, podemos citar: os personagens perturbadores ou excêntricos, os cenários decadentes e abandonados, bem como os eventos sinistros ou grotescos relacionados à pobreza, à alienação, ao crime ou à violência.

Seu modelo formal é o Morro dos Ventos Uivantes (1847), de Emily Brontë (1818-1848). Posteriormente, Howard Phillips Lovecraft (1890-1937) também criou poderosos góticos regionais, muito em função de seu preconceito contra as pessoas do campo. Elas são gente estranha e atrasada em alguns contos seus, cujo tema é a regressão a um estágio primitivo. Há também o medo do atavismo, isto é, de costumes arcaicos que ressurgem na vida moderna, seja o canibalismo ou os sacrifícios humanos. Por analogia, é como se uma criatura selvagem e subumana viesse à tona, como o bestial Sr. Hyde de O Médico e o Monstro (1886), ou um canibal, como o Leatherface de O Massacre da Serra Elétrica (1974).

O canibalismo na mitologia

“Morri! E a Terra – a mãe comum – o brilho Destes meus olhos apagou!… Assim Tântalo, aos reais convivas, num festim, Serviu as carnes do seu próprio filho!” Augusto dos Anjos

O tema do canibalismo aparece no folclore e nas lendas de muitas culturas, sobretudo nas histórias de vingança e de personagens malignos. A bruxa de “João e Maria” é um exemplo conhecido. Assim como a Baba-Yaga do folclore eslavo, deusa da morte, ogra ou bruxa que roubava crianças, depois as cozinhava e comia. Deuses canibais existem nos mitos de todo o mundo, desde os primórdios.

Na mitologia grega, há vários relatos de canibalismo. A lenda de Tiestes conta do homem cujo irmão, a fim de vingar-se do adultério, o fez comer seus próprios filhos. A de Tereu, por sua vez, é a lenda do rei da Trácia cuja esposa matou seu filho e serviu a ele sua carne, também por vingança. O rei da Frígia, Tântalo, deu os próprios filhos para que os deuses comessem, a fim de testá-los e força-los à transgressão. O titã Cronos devorou os seus para que não o destronassem. O monstro feminino Lâmia não só roubava crianças e as devorava, como também agarrava os jovens e lhes sugava o sangue.

No Velho Testamento da religião cristã, há indícios de canibalismo entre os hebreus. No entanto, eles pareciam recorrer a esse ato apenas para evitar a fome. Além disso, pode-se interpretar um dos principais rituais cristãos como um ato de canibalismo: a Santa Ceia. Mas, como sabemos, o ato cristão de consumir a divindade é simbólico, com o propósito de mostrar o amor entre Cristo e as pessoas.

Os road movies e o canibalismo no imaginário

Até os Ossos evoca tanto a regressão a um estado animalesco quanto o retorno de costumes considerados primitivos. Assim, bebe na fonte de um medo que habita o imaginário americano, certamente, desde a Expedição de Donner. Esta é a história do grupo de pioneiros do Missouri que partiu para a Califórnia em 1846. Durante a viagem, uma série de contratempos os atrasou. Para piorar, tempestades prematuras atolaram o comboio em Sierra Nevada, deixando os pioneiros presos nas montanhas em pleno inverno, sem provisões. No momento em que as rações acabaram, muitos daqueles homens precisaram recorrer ao canibalismo, a fim de sobreviver.

O relato da Expedição de Donner é um entre tantos outros da Marcha para o Oeste, do século XIX. Com efeito, as histórias de travessia continuaram no cinema. Os road movies, como Até os Ossos, nasceram da tradição de cruzar o país em busca de um novo lugar, de um reencontro com o passado ou de melhores condições de vida. Filmes desse gênero, nos quais o protagonista sai em viagem pelo interior dos Estados Unidos, exploram temas como alienação, identidade cultural e autodescoberta.

ATENÇÃO! OS PARÁGRAFOS ABAIXO CONTÉM SPOILERS!

Personagens de fronteira

Até os Ossos começa no sul dos Estados Unidos – região “obcecada com encruzilhadas e fronteiras, sejam territoriais (…) ou relacionadas a gênero, classe social, sexualidade e raça” (Street; Crow, 2016, p. 2). Assim que chega em Ohio, Maren conhece um velho excêntrico chamado Sully (Mark Rylance). Ele também é canibal e diz que a necessidade de comer carne humana cresce com o passar do tempo. As moscas que o rodeiam evocam a metáfora do Senhor das Moscas, de William Golding. Em outras palavras, fazem dele um símbolo da transgressão.

Maren vai com Sully à casa de uma idosa, que está morrendo no andar de cima. Na manhã seguinte, vê o homem devorando seu corpo feito bicho, e se junta ao festim. Então vai embora. Pelo caminho, conhece Lee (Timothée Chalamet), um garoto canibal e igualmente sem rumo. Eles então se apaixonam e seguem viagem juntos, na esperança de achar a mãe da garota. Maren e Lee são personagens fronteiriços. Ela é negra e ele, com seu estilo punk, é sempre apontado como gay pela sociedade.

Além disso, ambos vivem em condição de pobreza extrema, são despossuídos e não tem moradia fixa. Pelo contrário, precisam pousar em lugares abandonados e decadentes, cenários típicos do gótico americano. Afinal, esse é o gênero que explora a presença dos outros naquela nação. Excluídos por natureza, Maren e Lee são vistos com maus olhos onde quer que estejam. No fim, só têm um ao outro. O canibalismo, para eles, é um ato de amor.

Das tripas, coração

O choque de dois mundos é, sem dúvida, um medo constante no imaginário americano. Em Até os Ossos, Maren e Lee agem com selvageria desenfreada, assemelhando-se a bichos ou criaturas de uma era primitiva. A princípio, a educação que inculca valores, consciência e empatia teria falhado para eles. Por consequência, cederam a impulsos sombrios dos níveis mais primitivos da mente.

No entanto, o filme de Guadagnino tem uma lógica mais trivial, que é a da privação econômica. Os protagonistas surgem como a prole de uma classe trabalhadora desempregada e despossuída. Maren e Lee despertam um horror inerente à sua condição, que é a da pobreza extrema. Vivem às margens, são considerados parasitas pela sociedade e alimentam-se de restos. Essa lógica funciona como metáfora tanto de uma região pobre e desindustrializada dos Estados Unidos quanto do Brasil, onde a miséria avança a passos largos e muitas pessoas comem o que encontram, até os ossos.

Referências

O Dicionário de mitologia (2021), de J. A. Coleman.

Dicionário da mitologia grega e romana (2011), de Pierre Grimal.

The Palgrave Handbook of the Southern Gothic (2016), de Susan Castillo Street e Charles L. Crow.

“The History of Cannibalism, Mythology and Religion”, por Karoline Lukaschek (Atmosfear Entertainment). Em: https://www.atmostfear-entertainment.com/culture/traditions/history-cannibalism/.

“Beyond Cannibalism: The True Story of the Donner Party”, por Simon Worral (National Geographic, 02/07/2017). Em: https://www.nationalgeographic.com/history/article/donner-party-cannibalism-nation-west/.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Até os Ossos: o canibalismo na mitologia, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/ate-os-ossos-o-canibalismo-na-mitologia/. Acesso em: 29/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

2 respostas

  1. Adorei sua análise!!! Já ganhou um escrito aqui. Vi esse filme hoje e fiquei apaixonado pela estética, ao mesmo tempo que mostra violência, mostra a delicadeza..

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