Chiharu Shiota e os fios vermelhos do destino

A arte cria poderosas formas de expressão, as quais transmitem emoções e sentimentos que muitas vezes não somos capazes de descrever. Disso, Chiharu Shiota é prova viva. Para os amantes da arte e da cultura japonesa, sua obra é uma viagem sem volta a um universo simbólico riquíssimo. Nela, os ciclos da vida e sua transitoriedade, bem como as memórias e experiências pessoais da artista surgem dos emaranhados de fios vermelhos. Com suas instalações labirínticas em grande escala, Shiota evoca o destino, a conexão intrínseca entre os seres humanos e outros temas da mitologia asiática. Vamos descobri-los!

A obra de Chiharu Shiota

Os destinos da vida são tema recorrente em Shiota, cujos trabalhos passaram pelo Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, em 2020. Linha Vermelha (2018), por exemplo, lança luz à produção manual da artista. Dois barcos, um destino (2019) é metáfora sobre as formas de avançar sem necessariamente saber qual é o ponto final, como acontece na vida. Os barcos, enquanto símbolos e “portadores de nossos sonhos e esperanças”, levam-nos em uma jornada de incerteza e admiração, disse Shiota. Exibida em museus e galerias ao redor do mundo, sua obra causa grande impacto nos espectadores. Além disso, é tema de estudos e pesquisas acadêmicas sobre a relação entre arte, mito e psicologia.

Chiharu Shiota nasceu em Osaka, no Japão, em 1972, e radicou-se em Berlim, capital alemã, nos anos 2000. Sua carreira artística teve início em 1994, tomando a pintura como principal suporte. Todavia, o espaço bidimensional logo se mostrou limitante ao seu processo criativo, que então se expandiu para as outras linguagens. Seus trabalhos site specific (ou seja, em lugares específicos) e em grande escala, frequentemente compostos por emaranhados de linhas, traduzem a multidisciplinaridade de uma artista cuja produção se desdobra em várias linguagens, sejam performances, fotografias, instalações e pinturas.

Metáfora da memória

Os temas da mitologia são muito presentes na obra de Shiota. A instalação No começo havia… (Fundació Sorigué Museum, 2015), por exemplo, faz alusão aos tempos mágicos dos princípios, isto é, às origens de tudo. Por sua vez, nos mais icônicos trabalhos da artista há os fios vermelhos como o sangue. Eles, que desde o nascimento ligam as pessoas, de acordo com a mitologia asiática, são também o prolongamento do circuito de veias que parte do coração e percorre todo o corpo.

Em sua instalação de novembro de 2022, no Museu Finlandês, os fios vermelhos estendem-se por quilômetros, tecendo enormes casulos entre os quais serpenteiam tocas e túneis, em torno de velhas portas de madeira. Estas são metáforas da memória e prelúdio de novos corredores. O título é Traçando fronteiras. Em seu ventre escarlate, o espectador vagueia livremente até se perder, sem rumo certo.

Os fios vermelhos do destino

Nesse tipo de trabalho, redes de fios vermelhos envolvem objetos pessoais, como sapatos, chaves e malas, criando um labirinto imersivo. A instalação tem relações profundas com a mitologia asiática, na qual os fios vermelhos representam o destino e as conexões entre as pessoas.

De acordo com uma antiga tradição chinesa, amarrava-se um fio vermelho invisível nos tornozelos (ou dedos, segundo os japoneses) das crianças quando nasciam. Esse fio, que nunca se romperia, seria um guia rumo ao destino, fazendo as pessoas se encontrarem e se conectarem ao longo da vida. A crença, de tão enraizada, deu origem ao antigo provérbio: “O fio vermelho do destino pode enrolar-se, mas nunca se romperá”. Este é um conceito antigo, encontrado até mesmo na mitologia grega, no mito de Ariadne.

A teia de Shiota: símbolo da conexão

A ideia de conexão é fundamental para Shiota, pois sua obra representa como as pessoas ao redor influenciam nossas vidas, e como estamos todos ligados. Ao envolver objetos pessoais em redes e casulos de fios vermelhos, a artista cria uma metáfora visual para essa ideia, mostrando como nossas histórias se entrelaçam. Tais objetos são como as memórias que carregamos ao longo da vida. Sentimentos como dor, insegurança e fragilidade, bem como a ideia de destino, que integram a complexa teia da vida, também são representados. Assim, dentro do labirinto imersivo de Shiota, o espectador entra em um universo emocional e simbólico que permite revisitar suas memórias.

Nova perspectiva à crença

Ao mesmo tempo em que a artista toma a mitologia asiática como inspiração, dá uma nova dimensão à crença nos fios vermelhos do destino. Decerto, leva-nos a pensar na conexão universal entre todos os seres; faz isso através dos objetos pessoais, fotografias, vídeos, desenhos e gravuras, sugerindo relações com nossas histórias de vida. Ao entrelaçar tais objetos em fios vermelhos, cria um simbolismo que representa conexões emocionais e experiências passadas, oferecendo nova perspectiva à crença.

As instalações de Shiota afetam as emoções em níveis muito profundos, já que os objetos envoltos nos fios vermelhos simbolizam e representam nossas histórias pessoais. Assim sendo, os labirintos imersivos fazem com que o espectador estabeleça forte conexão com as suas próprias memórias e emoções. Levam-no, por consequência, a uma jornada interior sem rotas ou paradas obrigatórias, porque a experiência deve ser vivida ao máximo. Esta é, sobretudo, uma viagem íntima e pessoal, feita de angústias, sonhos, silêncios e memórias. Aqueles que atravessam os fios vermelhos são levados a refletir sobre os percursos e escolhas que fizeram nas suas vidas. Podem até mesmo ficar desorientados e confusos porque não há certo ou errado; este é, certamente, principal o aspecto da arte de Shiota.

Os fios como símbolos das conexões

Enfim, Chiharu Shiota vê nos fios esticados, atados, emaranhados e entrelaçados símbolos das conexões entre as pessoas e da complexidade das relações humanas. E hoje, mais do que nunca, na sociedade em rede na qual vivemos, parece crucial manter esses laços vivos. Não por acaso, as instalações da artista despertam uma gama de emoções, que variam de acordo com as experiências de cada espectador. Para alguns, evocam nostalgia ou saudade, enquanto para outros representam descobertas pessoais e vínculos com as próprias raízes. Essa capacidade de conectar emocionalmente os espectadores é uma das características marcantes da arte de Shiota. Por isso, ela é tão admirada e estudada em todo o mundo.

Referências

Site oficial de Chiharu Shiota: https://www.chiharu-shiota.com/ (em inglês e japonês).

CCBB apresenta tour virtual de mostra da artista japonesa Chiharu Shiota. Em: https://acessocultural.com.br/tag/chiharu-shiota/.

“Chiharu Shiota – Red threads connecting Milano to Espoo”, por Lorella Giudici (Arte Morbida, 16/11/2021). Em: https://www.artemorbida.com/i-fili-rossi-di-chiharu-shiota-collegano-milano-a-espoo/.

“Chiharu Shiota, Red Threads of the Soul”, por Hideko Kawachi (13/02/2020). Em: https://pen-online.com/arts/chiharu-shiota-red-threads-connecting-the-here-and-there/.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Chiharu Shiota e os fios vermelhos do destino, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/chiharu-shiota-e-os-fios-vermelhos-do-destino/. Acesso em: 29/03/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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