Mais do que a maioria dos monstros e seres fantásticos, o Doppelgänger tem lugar de destaque na literatura, no cinema e artes em geral. Ele surgiu na era da razão, ora como cópia, ora como versão monstruosa do outro. Assim, questiona a ideia de indivíduo, provoca crises de identidade e revela o que inconsciente esconde. Logo vem à mente o Sr. Hyde, de O médico e o monstro, mas ele é apenas um exemplo. Vamos conhecer suas principais representações na forma de alter egos sombrios!
As origens do Doppelgänger na literatura alemã
Embora o Doppelgänger não seja uma criação moderna – pois há inúmeros exemplos no folclore e na mitologia –, suas origens literárias vêm da Alemanha de finais do século XVIII. Em Siebenkäs (1796-97), Jean Paul definiu o Doppelgänger como “pessoas que veem a si mesmas”, o que sugere, portanto, a noção de semelhança. Já na obra de E.T.A. Hoffman, autor de O Homem da Areia (1816), o duplo tem mais relação com a tradição gótica. Daí em diante, ao longo do século XIX, surgiu de várias formas na literatura – e no cinema, posteriormente: ora como autômatos, ora como estátuas-vivas ou marionetes.
No final do século XVIII e início do XIX, em obras alemãs, francesas e inglesas, o duplo também aparece como figura diabólica. Decerto, um marco para esse tipo de representação foi o Fausto de Johann Wolfgang von Goethe, levado aos teatros em 1808 e 1832. A ideia de pacto com o Diabo é um tema importante, afinal, o sábio Fausto vende sua alma para Mefisto em troca de conhecimento ilimitado; em virtude disso, forja-se um elo entre ambos os personagens. Nos atos um e dois da peça, eles chegam a trocar de papéis, tornando-se duplos demoníacos cada vez mais indistinguíveis.
O duplo em Poe e Dostoevsky: violência e crise de identidade
Enquanto isso, nos Estados Unidos surgia uma das mais perturbadoras histórias de Doppelgänger. Foi o “William Wilson” (1839), de Edgar Allan Poe, que se afastou da tradição alemã. Além disso, o escritor levou a violência gótica a consequências ainda mais radicais: o protagonista tenta encerrar de forma brutal a relação com seu duplo, que se revela ele próprio; como resultado, comete suicídio. Segundo Poe, o Doppelgänger é a “consciência sombria”, isto é, a personificação de elementos suprimidos do Eu.
Do outro lado do mundo, em contraste, o Doppelgänger deixava de ser o espectro inquietante do romantismo e de sua vertente gótica. Em O Duplo (1846), de Dostoevsky, não passa de uma pessoa que assume de fato o papel do protagonista e mina sua autoridade. Tem relação com a vida urbana moderna; com a experiência do anonimato e com a perda de relevância do indivíduo em meio às massas.
Sr. Hyde: o duplo mais famoso da história
O embate entre a identidade burguesa ideal, recatada e ordeira e seu alter ego horrífico, movido por instintos básicos, é tema da mais famosa história de Doppelgänger. O médico e o monstro (1886), de Robert Louis Stevenson, é uma combinação de ficção científica vitoriana e romance gótico. Nela, o cientista aristocrata Dr. Jekyll cria uma poção que o transforma no decrépito Sr. Hyde. Este, por sua vez, é personificação de elementos reprimidos no inconsciente do cientista, aos quais dá vazão na forma de violência e depravação sexual. Assim, viola as normas sociais da rígida Inglaterra vitoriana.
O médico e o monstro fala, sobretudo, do caráter dual da identidade humana. Seu foco temático reproduz o de Hoffman, mas a intensidade psicológica, junto do imaginário científico e de crime, fez dessa história o ápice dos medos da degeneração do indivíduo moderno, tema comum na época. A história também é inegavelmente visual, pois se baseou nas imagens fantasmagóricas e nos efeitos de fotografia dos aparelhos pré-cinematográficos. Não por acaso, tornou-se fonte de adaptações desde os primórdios da sétima arte, com mais de 120 versões até hoje. A primeira, estadunidense, data de 1908.
Projeção dos desejos do inconsciente
O Doppelgänger voltou a ganhar destaque a partir de 1900. Exemplo disso foi a primeira adaptação da obra seminal de Mary Shelley. O Frankenstein da Edison Manufacturing Company, de 1910, mostra a criação do monstro, que escapa e luta com seu criador; no final, este vê aquele no espelho, que então revela ser ele próprio. Assim, com as ideias de Freud em voga, o horror se manifesta como projeção de desejos violentos do inconsciente. O filme foi restaurado pela Biblioteca do Congresso Americano em 2018. Outro exemplo é O estudante de praga (1913), de Paul Wegener, o primeiro longa-metragem de horror. Nos anos 1920, com a figura do duplo, o expressionismo alemão trouxe à tona a fragilidade das identidades humanas. Expoente desse estilo, F. W. Murnau adaptou Fausto em 1926. O duplo também marcou as histórias modernas de detetive, nas quais investigador e suspeito funcionam dessa forma.
O Doppelgänger hoje
Na produção cultural contemporânea, o Doppelgänger não perdeu relevância. Exemplos emblemáticos são os filmes Clube da Luta (1999), adaptação do livro de Chuck Palahniuk, e o horror psicológico de O Babadook (2014). Também devemos lembrar do duplo do agente Dale Cooper na série Twin Peaks (1990-1991), de David Lynch. Outro exemplo mais recente é o monstro Hyde da série Wandinha, da Netflix. Nas palavras de Barry Murmane, o Doppelgänger, enquanto figura de duplicidade que podemos reproduzir infinitas vezes, foi-se renovando em diferentes períodos históricos. Assim, ele surge, de tempos em tempos, como figura central para expressar medos sociais mais amplos e questões de política de identidade, desordens psicológicas e desejos humanos proibidos ou inconscientes.
Referências
Verbete “Doppelgänger”, por Barry Murmane. Em: The Ashgate Encyclopedia of Literary and Cinematic Monsters (2014), de Jeffrey Weinstock (org.).
A filosofia do horror ou paradoxos do coração (1999), de Noël Carroll.
Como citar este artigo? (ABNT)
REIS FILHO, L. Doppelgänger: o duplo na literatura e no cinema, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/doppelganger-o-duplo-na-literatura-e-no-cinema/. Acesso em: 30/10/2024.