Cérbero como metáfora da guerra em Justiceiro

O cão de três cabeças é um dos monstros mais conhecidos da mitologia grega. Não por acaso, é personagem de filmes, games, desenhos animados e obras literárias. Por vezes, no entanto, o mostro lendário surge como metáfora, seja da descida ao inferno, seja do medo da violência. Este é o caso da série Justiceiro (2017), na qual o nome “Cérbero” é metáfora da guerra. Vamos descobrir o porquê!

Cérbero: o cão dos infernos

Na mitologia grega, Cérbero é um dos guardiões do Hades, isto é, do reino dos mortos. A imagem mais comum desse monstro é a do cão gigantesco com três cabeças, cauda de serpente e patas de leão. No entanto, há outras versões da lenda que o descrevem com cinquenta ou até mesmo cem cabeças. Diz-se que ele ficava no portão do Hades, preso em grilhões, onde aterrorizava as almas e as impedia de escapar. Em um de seus Doze Trabalhos, Héracles desceu aos infernos para captura-lo, o que fez com ajuda de Perséfone, a rainha do submundo. O monstro, em si, é bastante conhecido; talvez a questão mais espinhosa seja a etimologia de seu nome.

J. P. Mallory e D. Q. Adams relacionam o grego Kérberos, o cão do Hades, ao Sarvarā do sânscrito (língua clássica, litúrgica e literária da Índia antiga). Este era o nome de um dos cães de Yama, deus da morte e do submundo. Os autores sugerem, portanto, que ambos os termos seriam cognatos; em outras palavras, teriam uma raiz comum: a palavra protoindo-europeia para “manchado”. Mas não há um consenso em relação a isso. D. Ogden rejeitou outra hipótese, de que o nome viria de creoboros, isto é, “devorador de carne”. Alguns ainda traduzem Kérberos como “daemon da morte e das trevas”, da junção de kêr e erebos.

A Operação Cérbero em Justiceiro

Na ficção, é comum associar o nome do cão dos infernos à guerra e a operações militares. No game Mass Effect, por exemplo, há uma organização paramilitar supremacista denominada Cérbero. O pesquisador Mark Pitcavage, por sua vez, definiu o arquétipo do terrorista “lobo solitário” como uma entidade multifacetada. Não surpreende, portanto, que a operação militar na série Justiceiro tenha o mesmo nome. No quinto episódio dessa adaptação dos quadrinhos da Marvel, o anti-herói Frank Castle conversa com seu aliado David Lieberman. Ninguém além de Castle sabe que ele está vivo. Ex-analista da Agência de Segurança Nacional, Lieberman é um perigoso hacker. Por isso, foi perseguido pelo governo americano e teve que forjar a própria morte, a fim de salvar o pescoço e proteger sua família.

Entretanto, a vida de Lieberman perdeu o rumo depois que ele, sob o codinome “Micro”, vazou informações secretas e comprometedoras das forças armadas. Afinal, eram prova dos crimes contra a humanidade que os Estados Unidos cometeram durante a Guerra do Afeganistão (2001). O pano de fundo, portanto, é um dos capítulos mais sangrentos da controversa “Guerra ao Terror”. A série fala tanto da queda do governo do Talibã (movimento fundamentalista islâmico) quanto da ascensão de grupos terroristas. Estes, ao desafiarem o chamado “governo de coalizão”, levaram os EUA a uma das guerras mais longas, desgastantes e impopulares da sua história, na aurora do século XXI.

O que a Operação esconde

Com as informações que expôs, Lieberman revelou de forma nua e crua as verdadeiras intenções por trás da Operação Cérbero. Este projeto secreto, que antecede os eventos de Justiceiro, tinha o objetivo de rastrear e eliminar terroristas. A fim de cumprir seu propósito, a tropa de elite da Operação (o Esquadrão Cérbero) promoveu a captura, o interrogatório e a execução de alvos valiosos em Kandahar, no Afeganistão. Contudo, suas atividades eram não só imorais, como também ilegais, pois ocorriam sem aval do Congresso. Vale lembrar que a Operação Cérbero é um projeto militar ficcional, ou seja, não existiu fora da série; mas, decerto, inspirou-se em projetos reais e nos crimes de guerra americanos que vieram a público.

Com as mãos sujas de sangue, os soldados do Esquadrão ignoravam a ilegalidade dos seus atos e agiam como assassinos implacáveis. Tampouco sabiam que o projeto secreto era fachada para um esquema de contrabando de heroína (dentro dos corpos de soldados mortos). “A operação em Kandahar era chamada de Cérbero. Cão do inferno, cão de guarda de muitas cabeças do submundo,Lieberman explica a Castle. “Cérbero vem de Kérberos, do grego. Que significa manchado. Então Hades, o senhor dos mortos, literalmente chamou seu cão de manchado”. Nesta fala, Lieberman explica de forma pedagógica – para o espectador, principalmente – quem foi Cérbero, embora se apoie em uma definição contestada, mas que, por analogia, diz muito sobre os militares sem honra e igualmente “manchados” (de sangue). Mas Castle não quer saber de mitologia, e pergunta se o parceiro já terminou de falar.

As muitas cabeças da Guerra ao Terror

Em conclusão, a etimologia do nome “Cérbero” permanece obscura. Mas, considerando a função do cão dos infernos na mitologia grega, parece pertinente que ele empreste seu nome para uma operação militar da Guerra ao Terror. Afinal, Frank Castle e seus compatriotas não passavam de cães de guarda dos falcões da guerra. Eram, portanto, as várias “cabeças” desse esquadrão secreto; e estavam todos, de certa forma, “acorrentados” ao mundo dos mortos. Seja derramando sangue no massacre de Kandahar, seja em sua volta aos Estados Unidos, com seu fardo de lembranças e estresse pós-traumático.

Referências

“Cerberus Unleashed: The Three Faces of the Lone Wolf Terrorist” (American Behavioral Scientist, 2015), por Mark Pitcavage. Disponível em: https://pubag.nal.usda.gov/catalog/6209448.

Dragons, Serpents, and Slayers in the Classical and early Christian Worlds: A sourcebook (2013), de Daniel Ogden.

The Oxford Introduction to Proto-Indo-European and the Proto-Indo-European World (2006), de J.P. Mallory e D.Q. Adams.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Cérbero como metáfora da guerra em Justiceiro, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/manchas-de-sangue-da-operacao-cerbero-em-justiceiro/. Acesso em: 23/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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