O mundo grego como simulacro em AC Odyssey

paisagem nebulosa e sombria, com árvores mortas - simulacro do mundo inferior em Assassin's Creed Odyssey
O Mundo Inferior (Hades) em Assassin's Creed: Odyssey. Imagem capturada pelo autor em 15/05/2020.

No primeiro artigo sobre Assassin’s Creed: Odyssey, vimos o realismo do mundo grego no game e a imersão que oferece. Afinal, percorrer a Ática e o Peloponeso, subir até a Macedônia, a pé ou a cavalo, e navegar entre as ilhas do Egeu são experiências únicas. Esse é o mundo “real” do jogo, embora nele não existam só personagens históricos, mas também outros, ficcionais e míticos. Além disso, também há mundos paralelos em AC Odyssey. Para entender cada um desses mundos, vamos pensar no pano de fundo do game, a trama de ficção científica que traz o mundo grego como simulacro.

A mitologia de Assassin’s Creed

Como vimos antes, a existência de mundos paralelos em AC Odyssey está mais ligada à mitologia da própria franquia. Ou seja, o enredo de ficção científica por trás da trama épica de seus games.

Esse enredo gira em torno do Animus, máquina de realidade virtual (RV) da corporação Abstergo. A tecnologia, cujo nome significa “alma” em latim, permite ao usuário ver as memórias genéticas de seus ancestrais. Em AC Odyssey, quem vê as memórias do herói grego é Layla Hassan, ex-funcionária da empresa e membro da Irmandade dos Assassinos. O mundo grego que Layla vê (assim como o jogador) é uma RV que acessa via memórias genéticas.

A reconstrução do mundo grego

O mundo grego é um simulacro em AC Odyssey, seja ele histórico ou imaginário. A reconstrução digital desse mundo é de fato impressionante pelo grau de realismo, que faz o jogador “entrar” no passado. No contexto do jogo, a reconstrução da Grécia clássica se dá por meio de “projeção ficcional-científica”, termo de Umberto Eco no ensaio “Viagem pela hiper-realidade” (1984). Em outras palavras, o mundo grego em AC Odyssey é uma simulação gerada por tecnologia de ficção-científica, que permite ao jogador a imersão no passado.

A DLC “O Destino de Atlântida” é um mergulho mais fundo na mitologia, pois abre três novos mapas: Campos de Elísio, o Mundo Inferior e Atlântida. Estes três reinos míticos surgem no passado grego como simulações. Na história alternativa do game, eles teriam existido num tempo remoto, antes da humanidade. Quem os criou foi Aleiteia, ser de luz da antiga raça dos Isu, cujos membros os humanos passaram a cultuar (os deuses gregos, por exemplo, são todos Isu).

Posteriormente, os três reinos viraram lendas. Seus aspectos míticos são tema de outro artigo, do Projeto Ítaca pois o que interessa agora é a ideia de mundo grego como simulacro. Para nos ajudar a entendê-la, vamos então às teorias de Jean Baudrillard.

A ideia de simulacro

Em Simulacros e simulação (1981), o filósofo francês aborda as relações entre realidade e sociedade. Isto é, como as mídias moldam nossa percepção do mundo que nos cerca e as materializações que trazem à tona. A ideia é que a tela é capaz de criar uma realidade mais “real” do que o real. Nesse sentido, Baudrillard define o simulacro como cópia de coisas que não tinham ou já não têm mais um original.

Por sua vez, simulação é uma estratégia de reconstrução (ou imitação) do mundo real, aquele que experimentamos. Já o “hiper-real” é o realismo ao extremo, capaz de confundir os limites entre realidade e ficção. Onde uma começa e a outra termina? Não há distinção clara.

De acordo com Baudrillard, se é possível simular os deuses, reduzindo-os aos elementos que provam sua existência, então o sistema como um todo perde a força. Isso porque esses deuses não seriam irreais, mas simulacros. Em outras palavras, já não podemos substituí-los pelo “real”.

A imagem e o princípio de equivalência

Em “O Destino de Atlântida”, a imersão no antigo mundo grego sofre um abalo quando descobrimos que os deuses não são deuses, mas simulações de RV. Sendo assim, eles perdem força enquanto representação, ou seja, imagens que correspondem àquilo que, para os gregos, eram divindades.

Conforme disse Roger Chartier, é por meio da representação que uma pessoa (ou grupo) dá sentido ao mundo que o cerca. Portanto, há uma relação entre a imagem (enquanto representação) e esse mundo, que é a própria realidade. Baudrillard chama isso de princípio de equivalência entre a imagem e o real, de onde vem a representação. Em contraste com esse princípio, a simulação parte da imagem como aniquilamento da referência e negação radical dela própria.

Quando o real deixa de ser real

Faz sentido que Aleteia seja a guia do jogador na DLC, pois ela é a materialização da Verdade nos mitos. Mas, no mundo grego como simulacro, não é a divindade que deveria ser. Ela perdeu o caráter divino, já que não passa de um holograma, imagem hiper-realista e tridimensional em cores que fala com o herói.

Ainda de acordo com Baudrillard, quando o real já não é o que era, a nostalgia toma o seu lugar. Logo, dá-se ênfase nos mitos de origem, o que se deve ao advento da era dos simulacros e da simulação. Em suas palavras, “onde já não existem Deuses para reconhecer (…), onde já não existe Juízo Final para separar o falso do verdadeiro, (…) tudo já está antecipadamente morto e ressuscitado” (1991, p. 14). Em AC Odyssey, o reino dos Isu (e alguns desses seres) já estão mortos, pois Aleteia os recriou como simulação.

Do simulacro à emulação

Os três reinos míticos (mais especificamente dois deles, Elísio e Atlântida) entram na definição de Baudrillard. Isso porque o simulacro é o “imaginário da utopia”, um mundo extraordinário. Ou seja, é uma “ilha” à parte do “continente do real”, oposta a ele. Foi Thomas Morus quem criou o termo Utopia em 1516 para nomear uma ilha perfeita, lar de uma sociedade imaginária onde todos seriam iguais e viveriam em harmonia. Em contrapartida, o Mundo Inferior é a imagem que temos do Inferno.

Ao mesmo tempo que as simulações mostram a realidade se tornando ficção, ocorre exatamente o oposto: a ficção se torna real. Dito de outra forma, o virtual cria um extra de realidade. O que há de especial nas entidades (coisas falsas e reais) que a mídia cria é a sua natureza. Elas surgem como simulações de objetos virtuais e se tornam emulações, que competem com a realidade ao invés de copiá-la. Nesse sentido, incorporam uma realidade alternativa entre o virtual e o real.

O Animus como Holodeck

Decerto, é possível comparar o Animus a outras duas tecnologias da ficção: a “Sala do Perigo” de X-Men e o “Holodeck”, de Star Trek. A primeira, que estreou em The X-Men # 1 (set. 1963), é uma câmara onde os mutantes põem suas habilidades à prova contra armadilhas, mísseis, lança-chamas e outros mecanismos. Tais perigos surgem também como hologramas. De maneira quase idêntica, o Holodeck é uma sala capaz de simular vários ambientes de RV. Oficiais da nave Enterprise vão até ele para se entreter e fugir do real. Essa tecnologia surgiu na série Star Trek: Uma Nova Geração (1987).

Por dentro do Holodeck.
Will Riker no Holodeck.

Em muitos aspectos, o Holodeck lembra o Animus. De acordo com Janet Murray,o primeiro cria “um mundo ilusório que pode ser parado, iniciado e desligado à vontade, mas que se parece e se comporta como o mundo real”. Igualmente, o Animus recria o mundo grego como RV. O usuário pode “entrar” ou “sair” dele a qualquer instante, pausando e reiniciando a simulação logo em seguida.

A tecnologia do Animus oferece riscos: seu uso excessivo causa problemas de ordem perceptiva e ruídos que embaçam os limites entre real e virtual. Efeitos colaterais também ocorrem no Holodeck, visto que, mais de uma vez, seus usuários acabaram presos no mundo de RV.

Do ponto de vista narrativo, o Holodeck permite incluir grande variedade de locais, eventos e personagens do passado, ou mesmo lugares e seres imaginários da Terra. Na definição de Murray, esse “meio de entretenimento” também é uma “tecnologia utópica aplicada à ancestral arte de contar histórias” (2003, p. 30). Podemos dizer o mesmo do Animus. Ele recria o mundo grego como simulacro, embora seus objetivos tenham maior relação com a trama da franquia Assassin’s Creed.

Referências

Simulacros e simulação (1995), de Jean Baudrillard.

O mundo como representação (Estudos Avançados, 1991), por Roger Chartier.

Viagem na irrealidade cotidiana (1984), de Umberto Eco.

Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço (2003), de Janet Murray.

“Web Video and the Screen as a Mediator and Generator of Reality” por R. Vanderbeeken, em Video Vortex Reader II (2011).

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. O mundo grego como simulacro em AC Odyssey, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/o-mundo-grego-como-simulacro/. Acesso em: 03/12/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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