O poder da mitologia africana no rock’n’roll

A música e as tradições afro-americanas foram, sem dúvida, grandes influências para o rock’n’roll. Isso porque esse estilo musical, que surgiu nos Estados Unidos nos anos 1950, incorporou elementos do rhythm and blues (R&B), forma híbrida de estilos afro-americanos como o gospel, o ragtime, o blues e o jazz. Além disso, ainda que não sejam comuns no rock’n’roll, referências diretas à mitologia e à cultura africana aparecem na obra de alguns artistas e bandas. Confira abaixo!

A cultura afro-americana e as origens do rock

De acordo com Reebee Garofalo, as influências formativas e inovadoras do que viria a ser o rock’n’roll foram, em sua maioria, negras. O trabalho de T-Bone Walker com a guitarra elétrica inspirou B. B. King (“Three O’Clock Blues” e “The Thrill is Gone”, por exemplo), cujos acordes de uma corda só abriram caminho para dezenas de guitarristas. Muddy Waters “eletrificou” o blues (“Got My Mojo Working”) e Bo Didley, posteriormente, adentrou no mercado pop como astro do rock de assinatura singular.

Nos anos 1950, além de Didley, músicos como Chuck Berry, Little Richard e Sister Rosetta Tharpe emergiram como pioneiros na história do rock’n’roll. Cada qual contribuiu com seu som de guitarra, sua técnica, seus vocais enérgicos e suas performances dinâmicas. Daí em diante, vários artistas negros despontaram: Ray Charles, Clyde McPhatter, Sam Cooke e Joe Turner, por exemplo, entre tantos outros.

Não há dúvida, portanto, que o rock’n’roll nasceu da música afro-americana, ao passo que muitos artistas brancos passaram a tocá-la e gravá-la. Até certo ponto, isso levou a um significativo intercâmbio – ou apropriação – cultural. Mas, apesar de suas contribuições para o gênero, os músicos afro-americanos sofreram forte discriminação e marginalização na indústria. Não por acaso, os brancos que regravaram seus sucessos tiveram maior visibilidade e lucro. Conforme Garofalo, a história da música popular nos EUA foi de inovação negra e popularização branca. Esse padrão deve-se à intensa criatividade dos artistas negros, ao mesmo tempo que eram sistematicamente excluídos de posições de poder na indústria.

As influências da mitologia africana

O guitarrista Jimi Hendrix, por exemplo, incluiu elementos da mitologia africana nas suas músicas e performances ao vivo. Assim, a influente “Voodoo Child” (1968) é tanto uma celebração da liberdade individual, do poder da música e da improvisação, quanto uma rejeição aos valores tradicionais da sociedade. Através de metáforas, a canção evoca imagens de fogo, trovões e magia negra, e apresenta um protagonista que se identifica como um “filho do vodu”. Embora haja diferentes interpretações do seu significado, não podemos ignorar a herança afro-americana de Hendrix. Devemos lembrar, também, de sua conexão com o blues e o folclore afro-caribenho, repleto de feitiçaria e espiritualidade.

Para a banda norte-americana Living Colour, que surgiu em meados dos anos 1980, a música africana e o jazz são influências importantes. Além disso, artistas africanos e afrodescendentes como Fela Kuti e Miriam Makeba tiveram grande importância para o desenvolvimento do rock e do pop ao longo das últimas décadas. Já a canção “Papa Legba” (2018), da cantora haitiana e sacerdotisa vodu Moonlight Benjamin, evoca uma entidade da religião afro-caribenha, isto é, o intermediário entre o Deus Supremo e o mundo humano. Essa fusão poderosa e original das melodias e ritmos do vodu com o blues rock norte-americano dos anos 1970 deu origem ao voodoo blues rock.

Tudo começou com o blues

Gênero musical que surgiu nos EUA no fim do século XIX, o ragtime teve grande influência da música africana e de estilos norte-americanos, dos Minstrel Shows, Coon Songs e Cakewalks, por exemplo. Além disso, serviu de inspiração para gêneros que se destacaram posteriormente. O blues, por exemplo, nasceu principalmente das tradições musicais da África Ocidental que sobreviveram ao horror da escravidão nas plantations do sul dos EUA. Suas origens vêm da música gospel, oriunda dos spirituals e das novas igrejas pentecostais de início do século XX. Ao mesmo tempo que o ragtime e o jazz se popularizavam, esse gênero reavivou antigas tradições afro-americanas pré-Guerra Civil.

No momento em que chegou à sociedade branca americana, o rhythm and blues, com contribuições do country e do gospel, evoluiu para o rock’ and ‘n’roll. Nas palavras de Muddy Waters, “The Blues Had a Baby, and they Named It Rock and Roll” (“O blues teve um bebê, que batizaram de Rock’n’Roll“). Assim como no rock, diversos artistas do blues incorporaram à sua obra temas e elementos da cultura africana.

Os temas do blues e sua relação com os mitos

As raízes do blues sobressaem na sua estrutura rítmica e melódica, bem como nas letras, que frequentemente evocam a espiritualidade e o sofrimento humano, comuns na religião e nos mitos africanos. No estilo voz e violão, em geral um único indivíduo cantava o blues, cujos temas vinham sobretudo das suas vivências: amor, sexo, traição, pobreza, bebida, má sorte e andanças.

Em “Me and the Devil Blues” (1938), Robert Johnson fala sobre encontrar o diabo na encruzilhada, imagem comum na religiosidade e na mitologia africana. “O Diabo e eu / estávamos andando lado a lado“, cantou ele. O músico norte-americano foi, sem dúvida, um dos precursores desse gênero. Por sua vez, o malinês Ali Farka Touré combinou os sons do blues com a música tradicional africana. A letra de “Ai Du”, por exemplo, é em bambara, uma das línguas faladas no Mali. Estes são apenas alguns exemplos.

Saiba mais sobre os mitos e lendas africanos!

Referências

“Ragtime: breve história, características e principais compositores” (Revista da Tulha – USP, 2017), de Guilherme Massao Misina e Eliana C. M. Guglielmetti Sulpício.

From the Blues to Hip Hop: How African American Music Changed U.S. Culture and Moved the World” (2010), de Ethan Goffman.

Lift Every Voice: The History of African American Music (2009), de Burton W. Peretti.

Crossing Over: From Black Rhythm & Blues to White Rock’n’Roll” (2002), de Reebee Garofalo.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. O poder da mitologia africana no rock’n’roll, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/o-poder-da-mitologia-africana-no-rocknroll/. Acesso em: 30/10/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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