O Predador e as lendas indígenas: análise de Prey

Um dos grandes monstros do cinema é, sem dúvida, o Predador. Assim ficou conhecido o icônico alienígena que vem à Terra para caçar os seres humanos, com armas e dispositivos high-tech. Ele apareceu primeiramente em 1987, no filme de ação e ficção científica que deu início a uma franquia e rendeu quatro continuações. A mais recente é O Predador: A Caçada (Prey, 2022), que funciona como prólogo do filme original. Nela, uma criatura da mesma espécie pousa nas Grandes Planícies (entre os Estados Unidos e o Canadá) séculos antes. Dessa vez, no momento em que a colonização europeia ganhava força, quem fica à mercê da ameaça extraterrestre são os povos nativos. Vamos desvendar os temas da mitologia indígena americana nesse filme. Veremos como a figura lendária do Predador, em particular, relaciona-se a monstros temidos por sua habilidade de caçar os seres humanos.

A caçada começa

O ano é 1719. Nas Grandes Planícies, Naru aspira tornar-se uma grande guerreira, assim como seu irmão. No entanto, espera-se que a jovem comanche seja uma das curandeiras de seu povo. Certo dia, quando sai à procura de seu cão, ela avista luzes estranhas no céu e as interpreta como um “pássaro do trovão”. No seu campo religioso, isso faz sentido. Afinal, essa ave lendária é um mito bastante difundido no folclore nativo americano, principalmente entre as tribos do Meio-Oeste, das Planícies e do Noroeste. Diz-se que é grande o suficiente para levar uma orca nas suas garras – assim como uma águia leva um peixe. Conforme sua denominação indica, ela produz o som do trovão e os relâmpagos.

Mas as luzes, na verdade, vêm de uma espaçonave extraterrestre. Depois que se depara com um rebanho de bisões esfolados, e ora pelos seus espíritos, é a vez da jovem tornar-se presa – conforme indica o título do filme – e a caçada começa. O Predador embosca e mata, um a um, os guerreiros que vão à floresta atrás da garota. Daí em diante, ela precisa sobreviver aos ataques brutais da criatura que a persegue. Nesse sentido, O Predador: A Caçada segue o enredo dos demais filmes da franquia; é um survival horror de ação e ficção científica, dessa vez enlatado numa ambientação épica.

O novo visual do Predador

O Predador (1987) segue os passos de um grupo paramilitar em missão de resgate na América Central. Lá, no coração da floresta, em uma área controlada por milícias, os soldados se deparam com o impensável: um alienígena feroz, que os persegue e caça. Para isso, ele combina tecnologia avançada (armas de energia e camuflagem com sistema de invisibilidade) e armas brancas (lâminas, dardos e lanças). O Predador é bípede, com estrutura corpórea similar à nossa, embora seja maior e muito mais forte. Sua face, desprovida de nariz, é monstruosa, com mandíbulas proeminentes de artrópode.

Em O Predador: A Caçada, o alienígena ganhou um novo design. De acordo com o supervisor de efeitos Alec Gillis, a ideia era dar um aspecto ainda mais feroz, selvagem e primitivo à criatura. Assim, a máscara metálica foi substituída por outra, feita de ossos, que deixa as mandíbulas à mostra. Ela é semelhante à do General Grievous, vilão cibernético de Star Wars: Episódio III – A Vingança dos Sith (2005). Sua armas mais tecnológicas também sumiram. Do contrário, não seria uma luta justa para a guerreira comanche.

A mitologia indígena em O Predador: A Caçada

O novo filme da franquia traz, inegavelmente, vários elementos da cultura nativa americana. Em primeiro lugar, na cosmovisão dos povos indígenas, a caça é sagrada. Não por acaso, vemos os rapazes da aldeia se empenharem coletivamente nessa atividade. Vale lembrar que os espíritos dos animais e dos humanos são igualmente importantes. Por isso, Naru honra o espírito dos bisões mortos. O próprio pássaro do trovão, ao qual a garota se refere, representa a força sagrada da natureza.

Além disso, nos mitos e lendas indígenas, fala-se de guerreiros que lutam contra seres sobrenaturais para defender seu povo e preservar o equilíbrio da natureza. Essa é a função de Naru, que sonha em se tornar uma grande guerreira. Já o Predador, desde o início, não respeita a natureza; ao matar brutalmente o lobo que estava atrás de um coelho, interfere na cadeia alimentar e na ordem das coisas. (O coelho sobrevive). Enquanto entidade de outro mundo (literalmente), o Predador representa o mundo sobrenatural. Assim sendo, podemos relacioná-lo a monstros da mitologia indígena americana, temidos por sua habilidade de caçar os seres humanos. Vamos conhecê-los!

Pia Mupits / Mupitsl

Em certo ponto, Naru define o Predador como um “Mupitsl”, que é um monstro do folclore comanche similar ao “Grande Homem Coruja” dos apaches. Também conhecido como Pia Mupits (piamupits, piamupitz, mu pitz, mupits e outras variações), ele é um gigante peludo que faz uma árvore de bengala e vive nas montanhas do Norte, em cavernas. Um dos primeiros registros sobre esse monstro aparece no Spanish-Comanche Dictionary (1865), escrito por Manuel García Rejon e publicado no México.

Diz-se, também, que o monstro captura e devora crianças, o que parece um medo comum no imaginário indígena. Afinal, de acordo com o Comanche National Museum and Cultural Center, os filhos eram os presentes mais preciosos para aquele povo; e, já que os pais não costumavam puni-los, por vezes os irmãos mais velhos assumiam essa tarefa. Ainda assim, caso as crianças não ficassem quietas, nem parassem de chorar, dizia-se que o Pia Mupits viria comê-las. Nesse sentido, o conceito se assemelha a outro mais recente e bastante conhecido: o Bicho Papão. Em entrevista, a produtora do filme e membro da nação comanche Jhane Myers relacionou o lendário monstro indígena ao Predador.

Wendigo

O Wendigo dos algonquinos, por exemplo, é um ser canibal que mata e come suas vítimas. Nas lendas, a descrição desse monstro varia. Ora é incrivelmente magro, feito as múmias, com o crânio e o esqueleto à mostra sob a pele cinzenta; ora é um gigante, que aumenta de tamanho cada vez que come. Algumas características marcantes são: os olhos brilhantes de brasa, os dentes afiados, o hálito asqueroso e o mau-cheiro. Seus poderes incluem visão, audição e olfato excepcionais, resistência e força sobre-humanas. Diz-se também que se movem com a velocidade do ventos.

Sabe-se que o Wendigo existiu no imaginário e na história oral algonquiana por vários séculos, muitos antes de os europeus chegarem à América do Norte. Na maioria das lendas, o monstro é o humano que se transforma por causa da ganância. Nesse sentido, são contos de advertência acerca do egoísmo e do valor da vida em comunidade. Por outro lado, interpretações não-nativas dessa entidade tendem a categorizá-la como produto fantasioso de uma cultura “alienígena”, isto é, estrangeira. Em O Predador: A Caçada, sugere-se que a aparição do monstro-título no passado deu base para a existência de monstros como o Wendigo no imaginário dos povos indígenas. Assim, ao mesmo tempo que o filme cria uma história alternativa, ampliam-se o universo e a mitologia da franquia cinematográfica.

Devorador de Homens

No Sudeste dos Estados Unidos, o Devorador de Homens era um monstro carnívoro que caçava gente, conforme seu próprio nome revela. Sua aparência também era inconstante – para algumas tribos, lembrava um urso monstruoso; para outras, assemelhava-se a um leão da montanha gigantesco. Só não era humano ou humanóide, pois apareceu sempre como um grande animal de quatro patas. Alguns folcloristas creem que essa lenda tenha sido inspirada por mamutes ou fósseis de mastodontes.

A mensagem do filme

Em resumo, O Predador: A Caçada evoca a mitologia indígena não só pelas referências àquela cultura, mas, principalmente, pela figura do monstro alienígena. Isso porque ele assume o papel de monstros lendários, vistos, sobretudo, como representações da fome, da morte e da violência. Ademais, o filme funciona como alegoria da relação dos humanos com a natureza. Nesse sentido, o Predador também é uma advertência: representa a ameaça que a humanidade enfrentará caso não cuide do meio ambiente e das espécies animais. Enfim, traz importantes provocações acerca da nossa relação com a natureza e da necessidade de proteger as espécies que compartilham conosco o planeta.

Conheça também o simbolismo do coelho na mitologia indígena!

Referências

Spanish-Comanche Dictionary (1865), de Manuel García Rejon.

The Canadian Encyclopedia (2023), em: https://www.thecanadianencyclopedia.ca/en.

Native American Indian Legends and Folklore (2023), em: http://www.native-languages.org/legends.htm.

“‘Prey’: How the SFX Team Ratcheted Up the Horror for the Redesigned Predator Alien” (IndieWire, 09/08/2022). Em: https://www.indiewire.com/2022/08/prey-redesigned-predator-alien-1234749733/.

Eating Their Words: Cannibalism and the Boundaries of Cultural Identity (2001), de Kristen Guest (ed.).

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. O Predador e as lendas indígenas: análise de Prey, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/o-predador-e-as-lendas-indigenas-analise-de-prey-2022/. Acesso em: 29/10/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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