Krampus: o terror do Natal, do folclore ao cinema

No hemisfério norte, a longa noite do solstício de inverno se estende em meio a paisagens mortas, árvores esqueléticas e ventos uivantes. Seres mágicos invadem o sagrado reino familiar, onde ritos domésticos ocorrem, e a estação ganha uma aura inquietante. Sabemos que as relações do Natal com o sobrenatural são antigas; remontam primeiramente às suas raízes pagãs e aos festejos do Yule. Suas origens são muito mais sombrias, em contraste com a festividade americanizada que conhecemos hoje. Faz parte da tradição, por exemplo, atribuir ao Papai Noel ajudantes sinistros. O mais famoso deles é o Krampus, figura demoníaca do folclore europeu que pune as crianças malcomportadas. Do imaginário à cultura pop, com destaque para os filmes natalinos de horror, esse monstro se popularizou e ficou conhecido como uma versão maldita do Papai Noel. Vamos conhecê-lo!

As origens do Krampus

Hoje, o Krampus é mundialmente conhecido. Muitos vão se lembrar da figura demoníaca semelhante a um sátiro grego, com pelagem escura, dois chifres e uma língua enorme, que pune as crianças com varas. Al Ridenour explica de onde vem esse horror natalino. Embora o senso comum atribua ao monstro origens germânicas, seu verdadeiro reduto jaz nos vales montanhosos da Áustria e da Baviera. Na Alemanha, pelo contrário, a tradição só existe no sul. É claro que um habitante das áreas urbanas (de Berlim, por exemplo) poderia conhecê-la, mas apenas como um curioso costume do sul rural.

Durante o império austro-húngaro, o fenômeno de cartões postais do Krampus ajudou a popularizá-lo. O Krampuskarten, que passou a circular em larga escala no fim da década de 1880, introduziu essa tradição em regiões para além dos Alpes. De acordo com Ridenour, os artistas que criaram a imagem do monstro folclórico para os cartões se inspiraram na figura do Diabo, conforme o catolicismo tradicionalmente o representa, e em . Isso porque, se havia entre as populações rurais o costume de vestir peles de chifres de animais, os registros antropológicos de tais ritos não sobreviveram.

O deus grego dos pastores e rebanhos foi particularmente influente entre os artistas de fim de século, apaixonados pela sua figura enquanto personificação dos ideais pagãos e do excesso orgiástico. Na mitologia grega, Pã é uma deidade parte homem, parte animal; tem o rosto barbudo e enrugado, o queixo saliente, dois chifres na testa, corpo peludo e os membros inferiores de bode. Nas décadas de 1970 e 1980, o neopaganismo da contracultura recuperou essa figura e as raízes não-cristãs do Natal.

De onde vem o nome Krampus?

Conforme explica Ridenour, Krampus não era o nome de uma entidade específica, mas de uma classe delas – assim como se fala em “vampiros”, não em “Dráculas”. Escrevê-lo com a inicial em maiúscula vem da convenção de se fazer o mesmo com os substantivos em alemão. Não denota, portanto, nome próprio. Acredita-se que “Krampus” venha do alemão “Kralle” (“garra”) ou do bávaro “Krampn (algo sem vida, seco ou enrugado), embora não seja esse o nome corrente nos seus redutos tradicionais. Com os cartões postais, o termo ganhou ampla circulação no fim do século XIX e no início do XX. Daí em diante, passou a designar o monstro em todos os lugares, até mesmo na cultura pop.

No sopé da Baviera e nos arredores de Salzburg, o termo mais usado era, na verdade, “Kramperl”. Os tiroleses e outros povos referiam-se ao monstro apenas como o “Tuifl” (que no dialeto local significa “diabo”). Por vezes, devido à crença de que não se deve mencionar o nome do diabo, usou-se termos que o descrevem ao invés de nomeá-lo. Além do regionalismo, um fator histórico para a diversificação da tradição foi a reforma religiosa. Nas regiões protestantes, à medida que perdia seu caráter eclesiástico para se tornar uma figura secular, que dá presentes, São Nicolau manteve os seres mágicos que o acompanhavam – aos quais se chamou, genericamente, de “ajudantes sombrios”.

Histórias para assustar crianças

A entidade ameaçadora, associada ao ato de dar recompensas, certamente atendia a propósitos pedagógicos. Contudo, essa ideia se modificou ao longo do tempo na literatura, no folclore e na tradição religiosa. O “Bicho-Papão” ou Kinderschreckfigur alemão (isto é, “figura do terror infantil”), garantia que as crianças fizessem suas orações, se comportassem bem ou dormissem na hora certa.

Acredita-se que os “ajudantes sombrios” – algo de que se falava, mas que nunca se via – tenham surgido primeiramente como seres amorfos ou de múltiplas formas. Possível descendente de personagens obscuros como o Schawarzer Mann (“Homem Sombrio”), o Krampus só ganharia sua imagem moderna em meados do século XIX. A tradição alemã, por sua vez, é muito mais antiga. Nela, suas origens remontam a um passado obscuro, mas sempre com a função disciplinar. Na hora de dormir, as crianças eram aterrorizadas pelo Krampus e outros seres folclóricos, como o Sandman.

O Krampus e os filmes natalinos de horror

Das sombras de uma sociedade secular, o Krampus se tornou símbolo do Natal às avessas. Hoje o conhecemos como um ajudante maligno do Papai Noel, que assusta e pune as crianças com varas de bétula, ao invés de dar presentes. Por essa razão, o senso comum fez dele um “anti-Papai Noel”, distorcendo assim o seu sentido folclórico original. Além disso, conforme vimos, sua forma grotesca de demônio, com chifres e corpo peludo, teve influência do cristianismo e da figura de Pã.

Da tradição alpina aos cartões postais que se espalharam pela Europa, o Krampus se tornou mundialmente conhecido no século XX. Na última década, em especial, o cinema fez dele um monstro extremamente popular no folclore contemporâneo e nos filmes natalinos de horror. Em Krampus: O Justiceiro do Mal (2013), um policial tenta desvendar o misterioso sumiço de crianças, então segue rastros que levam direto ao monstro folclórico. No posterior Krampus: O Terror do Natal (2015), um garoto invoca acidentalmente o demônio para a casa da sua família. Estes são dois exemplos recentes, em meio a uma dezena de filmes de longa e curta-metragem que o Krampus estrelou desde os anos 2010.

Referências

The Krampus and the Old, Dark Christmas: Roots and Rebirth of the Folkloric Devil (2016), de Al Ridenour.

Dicionário da mitologia grega e romana (2011), de Pierre Grimal.

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Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Krampus: o terror do Natal, do folclore ao cinema, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/krampus-o-terror-do-natal-do-folclore-ao-cinema/. Acesso em: 29/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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