Filmes de horror natalinos: da tradição à subversão

Os filmes de Natal são antigos… tanto quanto o cinema, assim como os filmes de horror. Santa Claus (1898) e The Christmas Dream (1900) datam da virada do século XIX, e já na aurora do novo século veio a primeira adaptação de A Christmas Carol (1843). O conto natalino de Charles Dickens é, sem dúvida, um dos mais célebres de todos os tempos. A fábula do amargo Scrooge e dos fantasmas do Natal passado rendeu inúmeras releituras e adaptações para as telas. Mas as relações da festividade com o mundo sobrenatural são muito mais antigas; remontam às suas raízes pagãs, bem como às lendas e ao folclore europeu. Esse imaginário deu vida aos filmes natalinos de horror, que nos assombram há décadas. Conheça suas origens!

Breve história do Natal

O Natal, como o conhecemos hoje, surgiu no fim do século XIX. Naquela época, os Estados Unidos sofriam mudanças econômicas e sociais profundas que desembocaram na cultura moderna. A celebração passou a girar, cada vez mais, em torno da família e a troca de presentes se universalizou. Dali em diante, os símbolos e as tradições festivas pouco mudaram (a árvore, a reunião familiar, os rituais religiosos). Há, portanto, uma clara relação do Natal moderno com a sociedade de consumo que emergiu no início do século XX, ao mesmo tempo que o cinema se tornava uma indústria. Não surpreendentemente, a celebração virou commodity de Hollywood; daí nasceram os filmes natalinos.

A perenidade dos filmes de Natal

Mais do que uma tradição, o Natal é, sobretudo, uma celebração da cultura estadunidense, propagada, engrandecida e cultuada através do cinema. Com efeito, tem forte apelo à nostalgia, já que muitos de nós crescemos assistindo a filmes natalinos na TV. Pode-se dizer, até mesmo, que eles se tornaram um gênero, assim como os filmes de horror, faroeste, ficção científica… Mas, diferente destes, que sofreram altos e baixos ao longo do tempo, os filmes natalinos estiveram sempre entre nós de modo mais perene. Possivelmente por serem sazonais, isto é, associados a uma festa específica, de uma época específica.

Ano após ano, em dezembro, filmes de temática festiva entram em cartaz e tantos outros são reexibidos na TV. Alguns focam nos temas e símbolos do Natal, a exemplo de Os Fantasmas Contra Atacam (1988), Meu Papai é Noel (1994), Pode Me Chamar de Noel (2001), entre outros. Em alguns desses filmes, o próprio Papai Noel é um personagem – ele até virou um herói em A Origem dos Guardiões (2012). Outros são apenas ambientados no Natal; ou seja, têm a festa como pano de fundo – Gremlins (1984), Esqueceram de Mim 2 (1992) e Um Herói de Brinquedo (1996), por exemplo. Há também os filmes de horror natalinos, que vêm se popularizando nos últimos anos.

Relações do Natal com o horror

De acordo com Al Ridenour, o Natal é produto dos cantos mais sombrios do imaginação. Afinal, requer as trevas para existir e seus mistérios são os da madrugada. Não por acaso, tem relação com a longa noite do solstício e a rarefação da natureza no hemisfério norte. As árvores esqueléticas e os ventos uivantes dominam o ambiente nessa estação, que deu ao Natal uma aura inquietante e sobrenatural. No conto “O Festival” (1925), o escritor estadunidense H. P. Lovecraft (1890-1937) relacionou a celebração ao Yule, “mais velho que o homem e destinado a ele sobreviver”, bem como ao paganismo e ao mundo arcaico.

Ridenour compartilha dessa intuição. Já no fim de novembro, conforme lembra o autor, o mundo infantil de realidade consensual começa a se desmanchar. Seres mágicos então se manifestam nos lares de classe média, pinheiros surgem em seu interior e os pais realizam ritos domésticos que seus filhos não entendem bem. O Krampus é um desses seres. À espreita para punir as crianças malcomportadas, ele nos lembra da relação íntima da estação com o sobrenatural, que resultou nos filmes de horror natalinos.

Da literatura ao cinema

Em meados do século XIX, A Christmas Carol evocou uma atmosfera de melancolia e medo com seus fantasmas do Natal passado. A primeira adaptação do conto de Dickens para as telas, Scrooge, or, Marley’s Ghost, data de 1901. Este pode ter sido o primeiro dos filmes de horror natalinos, gênero que se popularizou nos anos 1980 e persiste até os dias de hoje. Sem dúvida, Gremlins botou medo em muitas crianças – esse é um filme que se passa no Natal. E quem não se lembra do Rei-Abóbora da Cidade do Halloween, que há trinta anos sequestrou e tentou substituir o Papai Noel? O Estranho Mundo de Jack (1993), de Tim Burton, é um filme infanto-juvenil de fantasia que incorpora o horror e o gótico.

Além dessas, no entanto, há produções realmente brutais e aterrorizantes. É o caso de Noite do Terror (1974), Natal Diabólico (1980), Natal Sangrento (1984) e And All Through the House (1989), episódio da série Contos da Cripta. Os filmes de horror natalinos são populares desde então – em 2022, destacam-se Christmas Bloody Christmas e The Mean One. Nas últimas décadas, em especial, ganharam uma nova estrela: o sombrio Krampus do folclore europeu. Com esse diabólico monstro, o gênero mergulhou ainda mais fundo nas raízes pagãs da festividade.

O horror do Krampus

Das sombras de uma sociedade secular com gosto pelo horror e pela fantasia, o Krampus virou símbolo da subversão, do Natal às avessas. Semelhante a um demônio, esse monstro com chifres é personagem do folclore dos Alpes e da Europa Oriental. É um assistente do Papai Noel, mas não dá presentes; pelo contrário, ele assusta e castiga as crianças malcomportadas. Assim, como observa Ridenour, o Krampus destrói brutalmente a ideia de um tempo de paz e alegria familiar. Por isso tornou-se um “anti-Papai Noel”, isto é, antítese do velho bufão e sorridente que é símbolo do consumismo e do patriarcado.

O Krampus se popularizou no mundo de língua inglesa no século XX, principalmente nas suas últimas décadas. Antes disso, a contracultura não tinha uma figura que combatesse o Natal e a tradição que ele representa. Afinal, de acordo com o autor, o neopaganismo preocupava-se mais em desossar as raízes não-cristãs da celebração. Nos anos 80, os slashers natalinos surgiram para abalar violentamente o status quo sazonal. Com eles, ganhou vida um novo subgênero, o dos filmes de horror natalinos, e o assustador Krampus se tornaria uma das suas maiores estrelas. Ele é o monstro de Krampus: O Justiceiro do Mal (2013), Krampus: O Terror do Natal (2015) e uma dezena de outros filmes com o seu nome.

Referências

The Krampus and the Old, Dark Christmas: Roots and Rebirth of the Folkloric Devil (2016), de Al Ridenour.

Lá vem o Halloween! Ou A noite em que o Rei Abóbora roubou o Natal, de Lúcio Reis Filho. Em: Tim Burton, Tim Burton, Tim Burton (2016).

“The First 10 Christmas Movies Ever Made” (Reel Rundown, 03/12/22), por Sarah Nour.

“O Festival” (1925), de H. P. Lovecraft. Disponível em: https://www.hplovecraft.com/writings/texts/fiction/f.aspx.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Filmes de horror natalinos: da tradição à subversão, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/filmes-de-horror-natalinos-da-tradicao-a-subversao/. Acesso em: 29/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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