Pink Narcissus: o filme que redefiniu o underground

A lenda grega de Narciso ganhou inúmeras releituras ao longo do tempo, principalmente no cinema queer. Esse é o caso de Pink Narcissus, poema visual erótico sobre os devaneios de um garoto de programa gay. Sozinho em seu quarto, o lindo rapaz cria fantasias narcisistas com homens violentos, dançarinos e motoqueiros com roupa de couro. O filme erótico e sensual, cujo diretor se manteve no anonimato por trinta anos, foi um marco do cinema underground americano.

O mistério do diretor anônimo

Nos créditos de Pink Narcissus não consta o nome do diretor. Por isso, houve rumores de que o filme era obra de Andy Warhol ou Kenneth Anger, dois expoentes do cinema queer nos anos 1960. O primeiro lançou em 1964 o curta-metragem Blow Job, de 34 minutos, que foca no rosto de um rapaz enquanto ele ganha um boquete. O segundo lançara, uma no antes, seu filme-fetiche Scorpio Rising.

Nos anos 90, o escritor Bruce Benderson, que era fã de Pink Narcissus, resolveu investigar o mistério do filme. Até, finalmente, desvendar a identidade do diretor desse clássico underground. De fato, não se tratava do pai da pop art nem do cineasta experimental que uniu erotismo e surrealismo. Seu nome era James Bidgood, ele ainda vivia em Manhattan e trabalhava no roteiro de um novo filme.

Em 1999, Benderson lançou pela Taschen um livro sobre o trabalho desse artista visual nos campos do cinema e da fotografia. Bidgood ganhou fama por sua obra homoerótica ultra-estilizada que abraçou várias mídias e disciplinas, tais como cenografia, música e performance drag. Ele fez Pink Narcissus em seu próprio apartamento no intervalo de sete anos (entre 1963 e 1970). O filme, quase sem diálogos, é uma fantasia sobre um garoto de programa, retratado muitas vezes nu. Na época de seu lançamento, em 1971, o diretor estava insatisfeito com o corte final, então pediu que tirassem seu nome dos créditos.

Narciso como personagem queer

Na mitologia grega, Narciso era um rapaz que atraía homens e mulheres, de tão lindo, mas por isso tornou-se indiferente ao amor. Com efeito, a deusa Nêmesis lançou um feitiço que o fez se apaixonar pelo seu próprio reflexo na água. Narciso então se curvou sobre uma fonte, viu seu lindo rosto e se afogou, incapaz de quebrar a maldição. A lenda inspirou diversos personagems queer no cinema, como o Tadzio de Morte em Veneza (1971), o “garoto mais bonito do mundo” de Luchino Visconti.

No filme de Bidgood, Narciso (Bobby Kendall) é um belo garoto de programa, protagonista dos seus próprios mundos imaginários. Ele se vê como assassino; como escravo romano, bem como o imperador que o condena; como o senhor de um harém masculino, para quem outro rapaz dança sensualmente… Todos estes são ícones fetichistas. Assim, Pink Narcissus leva o espectador a momentos de intimidade do garoto, que explora suas fantasias sexuais entre as quatro paredes do seu quarto cor-de-rosa.

Importância para a cena underground

Pink Narcissus virou referência para o cinema experimental LGBTQIA+. A exemplo de Warhol, Anger e Derek Jarman, por conseguinte, Bidgood subiu ao panteão dos grandes nomes do cinema queer e da cena gay underground. Isso se deve, principalmente, à estilização e à carga homoerótica dos elementos cenográficos, que realçam o figurino e os corpos masculinos. O diretor fez isso com sensibilidade extravagante, que o ator Bobby Kendall personificou para a câmera. Além disso, há muito do pulp e do glamour de Hollywood, mas de uma perspectiva estética exagerada e cafona.

Salvo o clímax, que rodou num loft no centro de Manhattan, o cineasta filmou as demais cenas no seu apartamento pequeno e decadente em Hell’s Kitchen. A trilha sonora, que muda de acordo com as imagens, e as luzes de cores vibrantes (ora azuis, ora rosas) criam uma atmosfera efêmera de excentricidade. Assim, Pink Narcissus move-se entre o épico e o intimista.

A estética de Pink Narcissus

Já que não tem um enredo claro, Pink Narcissus funciona como um “poema audiovisual” de 65 minutos. Isso porque se preocupa mais em construir uma experiência estética, em contraste com as técnicas que focam em narratividade ou continuidade. Assim, o filme realça os figurinos, a montagem e o erotismo, através do corpo dos modelos e de suas poses sensuais. O uso de primeiros planos põe em destaque ações banais do dia-a-dia, como o ato de fumar um cigarro, por exemplo. Tudo é palco e razão de epifania. Em analogia ao deus grego, busca-se alcançar “eros”, isto é, desejo, amor e sexo.

Com luzes brilhantes e paleta de cores inovadora, Pink Narcissus veio ao mundo como uma obra descaradamente gay e pornográfica. Bidgood rodou o filme em Super-8 e quase sem diálogos. Assim, criou um composição “solta” que gira em torno dos sonhos e fantasias de um garoto de programa, sozinho em seu apartamento. Também não deixa de ser um exercício autobiográfico, pois, nas palavras do diretor, é um retrato dos seus próprios sonhos de juventude em Nova York.

A sensualidade das cenas deve-se principalmente à encenação e ao uso das cores. O toureiro sexy calça suas botas em meio à profusão de tons roxos; depois, vemos Narciso em um boudoir de rosa pink eletrizante. O clímax é a dança do ventre, num jogo de fusões e sobreposições. Diante dos olhares do seu senhor, o escravo sexual sacode seus colares de pérolas e a tanga fina, que mal disfarça sua ereção.

O que move o desejo

A força que move o filme é o narcisismo do rapaz, bem como seu mergulho fantasioso nas expressões mais inconscientes do desejo humano. Elas se mostram sob o espectro da masculinidade, isto é, na forma de homens dominadores, cowboys, gladiadores romanos, deuses gregos e outros arquétipos LGBTQIA+. Tais figuras fetichistas moldam e levam adiante a narrativa visual, psicodélica e exuberante. Dessa maneira, o quarto de Narciso vira um santuário sexual digno de Afrodite.

Não há ações com começo, meio e fim; há, em contraste, ecos cênicos que dão palco aos fetiches do rapaz. Assim, materializam-se os universos ou manifestações do inconsciente. Das insinuações sexuais no banheiro aos jardins coloridos e aos cenários escuros, tudo revela o desejo de provar o desconhecido. Bidgood criou tais imagens com o propósito de causar sensações no espectador. Por fim, fazendo eco à lenda de Narciso, o filme sugere que os prazeres da carne levarão inevitavelmente à ruína.

O imaginário gay em Pink Narcissus

Em suma, Pink Narcissus toca na questão da identidade sexual e nos arquétipos que povoam o imaginário gay. Para isso, usa rico simbolismo a fim de explorar os aspectos mais singulares desse universo. O fascínio pelo corpo masculino mostra-se com estilização e erotismo intensos, que traduzem para o cinema os desejos sexuais mais profundos na mente humana.

Bidgood dava sinais do seu estilo já nas suas primeiras fotos, pois os temas contemporâneos estavam lá desde o início. Erotismo, desejo, marginalidade, performance… tudo salta à vista em seus retratos de homens nus. Ele pôs jovens com cara de menino, corpos sem pelo e bundas atrevidas em cenários mitológicos e fantásticos. Em Pan from Behind (1965-69), o deus Pã senta no tronco de uma árvore (esse tema volta em Pink Narcissus). Por sua vez, amarrado a um floco de neve gigante, Jack Frost não usa nada além de uma jockstrap e spray de glitter. A edição de agosto/setembro de 1965 da Muscleboy, uma das “revistas de ginástica” que burlavam a censura, trouxe na capa um jovem deitado na grama.

Nas artes visuais, as escolhas do diretor de Pink Narcissus influenciaram muita gente. É o caso dos fotógrafos e irmãos franceses Pierre et Gilles. Também podemos citar David LaChapalle, autor de fotos surrealistas e videoclipes de música pop, e o cineasta experimental Gus Van Sant, ambos estadunidenses. A ideia do rapaz queer que desafia as normas sociais é tema do filme O Ataque dos Cães (2021), que faz referência, inclusive, às revistas de ginástica. Bidgood, com seus toureiros sensuais e dançarinos de ventre trincado, foi pioneiro de uma estética singular. Ela chega aos dias de hoje com marcas na obra do músico Lil Nas X, do fotógrafo francês Quentin de Ladelune e tantos outros artistas queer.

Veja Pink Narcissus no Internet Archive.

Para saber mais sobre cinema queer, leia sobre a releitura de Édipo Rei em O Funeral das Rosas.

Referências

“‘Addicted to dreaming’: James Bidgood, the Pink Narcissus director who defined camp” (The Guardian, 02/02/2022), por Oliver Basciano.

“Extremely Loud and Incredibly Camp” (Aperture, 15/05/2019), por Jesse Dorris.

Against Nature – William E. Jones on the art of James Bidgood” (artforum, 2019).

“‘Pink Narcissus’ Looms Large in Queer Cinema” (Frieze, 10/12/2015), por Ara H. Merjian.

James Bidgood (Photo Book Series, 1999), por Bruce Benderson.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Pink Narcissus: o filme que redefiniu o underground, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/pink-narcissus-o-filme-que-redefiniu-a-cultura-underground/. Acesso em: 04/12/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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