Björn Andrésen: o anjo da morte em Veneza

O documentário The Most Beautiful Boy in the World (2021) conta a vida de Björn Andrésen, ator sueco e um dos rostos mais famosos da sua geração. Sua vida mudou de repente, depois que deu vida ao personagem Tadzio do escritor alemão Thomas Mann. Ele tinha apenas quinze anos, mas chamou a atenção desde o início com sua beleza e seu porte físico. De presença marcante, embora precoce, Björn virou o menino dos olhos do diretor italiano Luchino Visconti. Foi assim que ganhou seu papel em Morte em Veneza (1971), adaptação de Mann, e se tornou “O Menino mais Bonito do Mundo”. Conforme vamos descobrir, por trás desse rótulo há o ideal clássico de beleza. Além disso, refletindo sobre as representações da mitologia grega no cinema, veremos em Tadzio uma personificação da Morte.

O ideal clássico de beleza

“Morte em Veneza” (1912) ocupou a mente de Visconti por anos. A novela de Thomas Mann segue os passos de Gustav von Aschenbach, um escritor em busca da beleza pura, que enfim encontra num rapaz de família polonesa. O cineasta inegavelmente persegue esse mesmo ideal de perfeição estética. E foi num menino loiro, frio feito uma estátua de mármore e de olhos cinzas, que encontrou seu Tadzio. Conforme a descrição de Mann, seus olhos tinham a “cor do mar”.

Margareta Krantz se lembra da visível agitação do cineasta no momento em que Björn Andrésen entrou na sala de testes. Nas palavras da diretora de elenco, o jovem sueco era extraordinariamente bonito, com um rosto de incrível fotogenia e carisma raro. Logo, aquele rosto viraria um ícone mundial.

Tadzio é a personificação do belo, mas em sentido clássico. De acordo com esse ideal estético, a beleza consiste num arranjo de partes que formam um todo coerente, isto é, harmônico, simétrico e de noções semelhantes. Contudo, vale destacar que essa é uma concepção europeia de beleza, que definiu, ao longo do tempo, padrões na arquitetura, na escultura, na literatura e na música. Os mestres do Renascimento, por exemplo, preocupavam-se sobretudo com a proporção perfeita.

Gustav, que busca semelhante ideal de perfeição estética, sente forte atração por Tadzio. Afinal, ele é representação dos padrões clássicos, ou seja, um reflexo temporal da beleza pura que o artista quer eternizar. A princípio, o escritor limita-se à contemplação e à admiração voyeurística dessa musa. No entanto, seu desejo vai ganhando conotações eróticas, cada vez mais obsessivas.

Tadzio como o anjo da morte

Em sua turnê pelo Japão, um jovem Björn Andrésen ofuscou o produtor musical Masatoshi Sakai, incrédulo que alguém tão belo pudesse de fato existir. Sobretudo por haver “algo misterioso em sua feição”. “Havia nele um brilho”, disse Sakai. “Mas, ainda que fosse apenas um adolescente, eu também podia sentir um lado sombrio. Isso dava a ele um apelo tridimensional”. Já Krantz ressaltou a aparente fragilidade do menino. Com todos esses atributos, Björn sobressaiu em meio aos demais concorrentes e entrou perfeitamente no papel.

De acordo com Visconti, Morte em Veneza é uma história de amor puro, que não é sexual ou erótico. É também uma tragédia, pois o vislumbre da beleza é o beijo da morte para o protagonista de meia-idade. No fim da novela e do filme, Gustav vê Tadzio no mar. O menino, então, dá meia-volta e encara seu admirador, que se ergue da cadeira de praia a fim de retribuir o olhar, mas cai morto. De fato, o menino não parece totalmente humano. Parece mais o anjo da morte.

Ao longo do tempo, o temor do fim último gerou inúmeras representações que povoam a literatura europeia. Nos mitos e religiões antigas, deuses ou anjos são responsáveis não só pela sina de todos os seres, mas também pela sua jornada ao mundo dos mortos. O deus grego Crono, por exemplo, pode ser a origem da alegoria da Morte na Idade Média. No Islã, Azrael é o anjo da morte que separa as almas de seus corpos. Ele é um dos quatro arcanjos e equivale ao anjo da morte judaico-cristão. O confronto dos mortais com o anjo da morte é tema comum na literatura e nas tradições populares. Tais narrativas refletem a atitude ambivalente do homem em relação à morte.

A beleza na mitologia grega

Vimos que Tadzio não é totalmente humano. De fato, Thomas Mann o descreve como um menino de cabelos castanhos e aura misteriosa, quase como um deus grego. Nos mitos há figuras masculinas de beleza pura como Adónis, menino que nasceu da casca de uma árvore e chocou Afrodite, de tão belo.

Para além do simbolismo da água, a ida de Tadzio ao mar remete igualmente à lenda de Narciso, base para outros filmes queer da época, como Pink Narcissus (1971). Embora despertasse a paixão de homens e mulheres, Narciso tornou-se insensível a ponto de desprezar o amor. Por isso, a deusa Nêmesis lançou sobre ele uma maldição, fazendo-o apaixonar-se pelo seu próprio reflexo na água. Num dia quente, o rapaz se curvou diante de uma fonte. Nela, viu seu lindo rosto e, não surpreendentemente, apaixonou-se. Incapaz de quebrar a atração por si mesmo, ele definhou e depois morreu. A beleza selou seu destino.

Narciso, de Caravaggio (1594-96).

Daí vem o termo “narcisismo”, que denota a excessiva absorção em si mesmo. De acordo com Anatol Rosenfeld, o amor de Aschenbach por Tadzio seria uma paixão narcisista, pois o escritor ama, na beleza do menino, a sua própria imagem, que idealiza e gostaria de ter. E que, ironicamente, irá lançá-lo às profundezas. No filme de Visconti, Björn Andrésen surge como a personificação de cachos dourados desse desejo narcísico. Assim sendo, ele é a própria Morte em Veneza.

Referências

Azrael (Encyclopaedia Britannica).

The Most Beautiful Boy in the World (2021), de Kristina Lindström & Kristian Petri.

A Sina do Menino mais Bonito do Mundo (Revista Trama, 31/10/2021), de Lúcio Reis Filho.

Beauty (Stanford Encyclopedia of Philosophy).

Morte em Veneza (1912), de Thomas Mann.

Dicionário da Mitologia Grega e Romana (2010), de Pierre Grimal.

The Ashgate Encyclopedia of Literary and Cinematic Monsters, de Jeffrey Weinstock (ed.).

Thomas Mann (1994), livro de Anatol Rosenfeld.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Björn Andrésen: o anjo da morte em Veneza, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/bjorn-andresen-o-anjo-da-morte-em-veneza/. Acesso em: 29/02/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

Uma resposta

  1. Um filme mágico com cenas marcantes e um silêncio contemplativo sem igual. Ao ser posto entre a doença mortal, que espreita pelas vielas, e a cura potencial, despejadas pelas águas do mar, ambas as personagens, Aschenbach eTadzio, nos trazem ao lugar do encantamento e do desejo. Sem que possam se compreenderem em suas buscas, não nos permitem, nem se permitem, gozar o festivo encontro do belo, tanto naquele que floresce, quanto naquele que se esvai. De tudo, me parece que não basta a dimensão imagética da beleza se ela não estiver, de certo modo, delineada pelo verbo.

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