Ziggy Stardust e o espírito do tempo

David Bowie ultrapassou fronteiras de gênero, forma e identidade. Desde o começo de sua carreira, em 1964, o artista britânico se reinventou através de uma dúzia de personagens. Assim, deixou marcas profundas no visual, no estilo, na música e na cultura pop. Mas foi no início dos anos 1970 que Bowie deu o grande passo rumo ao estrelato. Apropriando-se do imaginário da ficção científica, ele criou o deus alienígena Ziggy Stardust, que foi seu papel definidor.

Ao longo das décadas, Bowie se envolveu com diversas áreas e plataformas artísticas, tais como o cinema, a fotografia, as artes visuais, a mímica, o teatro, a moda, a produção musical e as novas mídias. O seu legado para a cultura contemporânea é extraordinário. Em 2022, o disco que trouxe seu invasor do espaço para a Terra – The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars – completa 50 anos. É uma obra que resiste ao tempo, com um arco trágico e muitas referências à mitologia.

O imaginário da ficção científica

Bowie andou em perfeita sintonia com seu tempo, sempre atento a tudo o que surgia de novo, bem como ao que veio antes. Conforme explica o crítico Mark Kermode, o artista se inspirou nas grandes produções de ficção científica dos anos 60 e início dos anos 70, principalmente 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Corrida silenciosa (1972) e Solaris (1972). Bowie também não escondia sua admiração por Laranja Mecânica (1971), que aos seus olhos “juntou todas as pontas soltas” em um turbulento começo de década. Adaptação do livro de Anthony Burgess, o polêmico e violento filme de Stanley Kubrick estreou em janeiro de 1972, no mesmo mês em que Bowie vestiu os trajes de Ziggy Stardust pela primeira vez.

Mas, é importante lembrar, o imaginário da ficção científica despertou interesse temático em Bowie desde o início da sua carreira. Seu primeiro sucesso de vendas, a canção Space Oddity (1969) narra a solidão de um astronauta no espaço. Major Tom é um herói trágico. Afinal, ele não dá um grande salto para a humanidade; pelo contrário, ele se perde para sempre na vastidão do cosmos. “O planeta Terra é azul, e não há nada que eu possa fazer”, lamenta-se o astronauta. Após cortar comunicação com o ground control, sua base terrestre, ele fica à deriva no esplêndido isolamento de sua cápsula. O escritor Ray Bradbury já havia explorado anteriormente a ideia do astronauta perdido no espaço; tema este que 2001, filme ao qual a música se refere, fixou nas mentalidades.

A obra de Bowie como representação da época

Space Oddity saiu no álbum David Bowie em janeiro de 1969, isto é, poucas semanas depois de a Apolo 8 se tornar a primeira nave tripulada a orbitar a lua. No entanto, o espírito da canção não era de otimismo. Na contramão da euforia com a space age, Bowie não só rejeitou o triunfo tecnológico, como também abordou um dos grandes temas da literatura existencialista. O isolamento do indivíduo em relação à sociedade e a si mesmo vinha dos textos de Camus, Sartre e Genet. Nesse sentido, o espaço sideral – elemento recorrente da ficção científica, assim como o astronauta perdido – deu vazão ao seu desgosto com a realidade circundante.

A tragédia de Major Tom é representação do mal-estar da época, mas não só isso. Revela também a insegurança de um artista que ainda não tinha um público cativo para as suas explorações de uma sociedade em fragmentação. De acordo com Peter Doggett, a obra de Bowie nos anos 1969-1970 não alcançou os milhões que ouviam o Let It Bleed (1969), dos Rolling Stones, ou o Plastic Ono Band (1970), de John Lennon. Bowie então resolveu criar um herói que educasse o público, ao mesmo tempo que causasse grande sensação, com ele próprio no papel principal. O herói trágico era ninguém menos que Ziggy Stardust, que se atreveu a seguir audaciosamente para onde homem algum jamais esteve.

Ziggy Stardust: um droog espacial

Para criar o visual exuberante, os trajes futuristas e as atitudes de Ziggy Stardust, Bowie juntou inúmeras referências. Aos espectros do rock ’n’ roll e da cultura pop, a exemplo de Little Richard, Elvis Presley e James Dean, somam-se elementos do teatro, da mímica, da commedia dell’arte e da tradição kabuki. Assim nasceu, como uma colagem, um dos personagens mais icônicos da época e, certamente, um dos mais lembrados do seu panteão. De fato, a imagem de Ziggy é espetacular.

A capa do disco The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars traz uma primeira versão do deus alienígena. Vemos um Bowie loiro com um macacão azul, aberto no peito, e a guitarra a tiracolo, como se ele tivesse acabado de descer da sua nave em uma rua escura de Londres. A inspiração para o traje e para a bota roxa de pugilista veio da gangue dos droogs de Laranja Mecânica, cujo visual Bowie admirava. Na contracapa, a cabine telefônica faz alusão à TARDIS, a máquina do tempo de Doctor Who, série britânica de ficção científica que a BBC produzia desde 1963.

A ascensão de Ziggy Stardust…

O surgimento de Ziggy Stardust em 1972 foi uma afirmação de arte conceitual. Ao invés de buscar a fama, como fizera até então, Bowie passou a agir como se já fosse famoso, apresentando-se ao público como um ser exótico de outro planeta. Seu novo personagem ocupou um vácuo na cultura pop, então carente de um ídolo que representasse uma nova geração e fosse aceito por ela. Aos olhos de um público jovem, que adentrava em um mundo inquietante e assustador na ressaca da contracultura, Ziggy vivia fora das normas sociais. Era masculino e feminino, humano e alienígena, andrógino e bissexual. Um eterno estranho, ele servia de exemplo para qualquer um que se sentisse isolado do mundo.

Decerto, o terreno movediço inspirou Bowie a fazer leituras críticas da realidade, tocando em questões sociais que preocupavam a cultura no início dos anos 70. Com Ziggy Stardust, o artista se tornou a estrela maior do glam rock, tendência musical pós-hippie dos anos de 1971 a 1975. O glam combinava um tom ácido e provocativo, inegavelmente britânico, com o rock underground estadunidense. Assim, oferecia aos seus adeptos uma fuga das condições sociais da classe trabalhadora, bem como das restrições físicas e emocionais da vida nos subúrbios. A grande promessa do glam era a reinvenção, isto é, a possibilidade de transcender o ambiente físico, social e sexual a fim de construir uma versão nova e idealizada do Eu.

…e, enfim, a queda

Ziggy Stardust e sua banda de invasores espaciais vieram à Terra com o propósito de redimir a humanidade. Porém, conforme revela a narrativa do disco conceitual de 1972, o quinto álbum de estúdio de Bowie, a nobre missão falhou. O alienígena desceu à Terra, como um deus do Olimpo, para salvá-la, mas caiu vítima da tríade sexo, drogas e rock ‘n’ roll, bem como do ego. Tornou-se então uma entidade poderosa a ponto de oferecer risco ao seu próprio criador, cuja fragilidade psicológica a cocaína ajudou a deteriorar. A queda de Ziggy Stardust evoca temas importantes da mitologia grega, como a lenda de Narciso e a fábula de Ícaro, dois exemplos de como o orgulho pode ser fatal.

Bowie, então, decidiu cortar o mal pela raiz. Em 3 de julho de 1973, no palco do Hammersmith Odeon, em Londres, aniquilou seu personagem. “(…) Este é não apenas o último show da turnê, mas também o último show que faremos”, disse Ziggy diante de um público extasiado. Dito e feito. A saída de cena do astro pop alienígena revelou, de forma brilhante e premeditada, a efemeridade do estrelato. Do mesmo modo, o ideal de juventude – que Buddy Holly, Brian Jones e James Dean representavam – se mostrou passageiro pela morte precoce dos ídolos de adoração popular. Além disso, os excessos e o narcisismo refletiam um estilo de vida dos astros do rock, a exemplo de Lou Reed, Iggy Pop e dos Stones. Combinação que, por vezes, se mostrou fatal. Nesse sentido, a contribuição de Ziggy Stardust para a cultura foi tão reveladora e desconcertante quanto a música que Bowie criou.

Referências

“Para ser lido no volume máximo: a década de Bowie e o glam rock em Velvet Goldmine” (Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, 2017), por Lúcio Reis Filho.

Enchanting David Bowie: space/time/body/memory (2015).

O homem que vendeu o mundo: David Bowie e os anos 70 (2014), de Peter Doggett.

David Bowie é o assunto (Museu da Imagem e do Som, 2014).

Moonage daydream: the life and times of Ziggy Stardust (2002), por David Bowie e Mick Rock.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Ziggy Stardust e o espírito do tempo, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/ziggy-stardust-e-o-espirito-do-tempo/. Acesso em: 26/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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