O mito de Ariadne em Dark: os fios do destino

Se você é fã de Dark, com certeza já se questionou sobre as alusões à mitologia que permeiam o enredo. Neste artigo, vamos desvendar as camadas mais profundas da série alemã através do mito de Ariadne, que é a base das três temporadas. Associado a ele estão a lenda do minotauro e os fios vermelhos do destino, conforme vamos descobrir. Prepare-se para uma jornada através do tempo e do conhecimento, em um universo onde o destino é inexorável e o passado nunca morre.

O monólogo de Martha

O mundo antigo a perseguia como um fantasma, sussurrava em seus sonhos como erguer um mundo novo, pedra por pedra. E assim eu soube que nada muda. Que tudo fica como antes. Que a roda gira, volta após volta. Um destino ligado ao outro. Um fio, vermelho como o sangue, que liga todas as nossas ações. Não é possível romper os nós (…)”.

A citação é um trecho do monólogo de Martha (Lisa Vicari), que a vemos ensaiar para uma peça de teatro, no episódio cinco da primeira temporada. Nela, a garota vive Ariadne, cujo mito é um dos principais temas da série Dark. No sexto episódio, finalmente vemos sua performance definitiva, com elevada carga dramática. No papel da personagem da mitologia grega, ela entrega o novelo de fios vermelhos a Teseu; em seguida, promete guia-lo: Precisa ir fundo, até o meio. Ele está esperando nas sombras. Metade homem, metade animal (…). Este laço que tecemos agora, prometa que nunca o romperá”.

Enquanto isso, Jonas (Louis Hofmann) penetra nas profundezas de uma caverna, percorrendo com as mãos um fio vermelho. Ele é o personagem que tenta desvendar os mistérios da cidadezinha, Martha, então, continua: “Assim como ele desceu em seu labirinto, eu desço no meu (…). Nosso fim é o mesmo. Aqueles lá em cima nos esqueceram (…)”. Recurso muito utilizado na série, o paralelismo entre as duas situações reforça a relação com o mito. Por fim, no momento em que a garota cai em lágrimas, sua mãe Katharina (Jördis Triebel) sobe ao palco para confortá-la. Mas, afinal, quem é Ariadne?

O mito de Ariadne

Na mitologia grega, Ariadne é a filha do rei Minos e de Pasífae. A princesa se apaixonou assim que Teseu chegou à ilha de Creta, e deu a ele um novelo de lã, para que não se perdesse no labirinto onde vivia o Minotauro. O herói poderia desenrolar o novelo, marcando o caminho de volta, e foi o que fez; depois que matou o monstro, seguiu o novelo até achar a saída. Sem a ajuda de Ariadne, talvez não conseguisse.

Ariadne decidiu partir com o herói, para escapar da fúria do rei, mas nunca chega a Atenas. Depois de uma escala na ilha de Naxos, seu amado a abandonou na praia enquanto dormia. Nesse ínterim, a princesa despertou com o nascer do dia e viu ao longe a embarcação, cujas velas sumiam no horizonte. As explicações para a traição variam de acordo com as versões do mito. De acordo com alguns autores, o herói teria seguido ordem dos deuses, pois os destinos não permitiriam que ele ficasse com a moça. Isso porque, na crença dos antigos gregos, existia a encarnação de uma lei implacável à qual os próprios deuses estavam sujeitos. Ou seja, o destino personificado de cada criatura humana.

Interpretando o monólogo de Martha

No contexto de Dark, o monólogo de Martha faz alude não só à mitologia como também à filosofia. Uma vez que o pensamento de Nietzsche fundamenta a série, os versos recitados pela garota nos remetem a muitas delas. Por exemplo, à ideia de que o tempo não é linear, mas cíclico, e que tudo retorna (“a roda gira”). O destino, por sua vez, é força inexorável (“não é possível romper os nós”) e todos os eventos já estão escritos, por isso vão sempre se repetir, até o fim dos tempos (“nada muda”, “tudo fica como antes”). Se tudo retorna eternamente, o futuro é passado, assim como o presente e o futuro.

Mas o passado se impõe, já que o “mundo antigo”, com suas tradições, persegue Ariadne tanto quanto a garota que a interpreta. A referência à “morte de Deus” (dos deuses, aliás: “Aqueles lá em cima nos esqueceram”) traz um dos aspectos do niilismo de Nietzsche. Além disso, é no centro (“meio”) do labirinto mítico que vive o Minotauro, com corpo de homem e cabeça de touro (parte homem, parte animal”). Filho de Pasífae, esposa de Minos, com um touro que o deus Poseidon enviou ao rei, é ele quem espera nas sombras. A peça, então, revela seu parentesco com Ariadne: se ambos eram filhos de Pasífae, eles eram, portanto, irmãos. A relação é óbvia, apesar de não ser muito lembrada nem nos livros de mitologia. Da mesma forma, é interessante pensar na complexa rede de parentesco transtemporal que une os personagens da série, conferindo à história uma estrutura mítica.

O labirinto do Minotauro

A peça de teatro e a descida à caverna são importantes. O paralelismo entre as cenas, além de evocar o mito de Ariadne, relaciona Jonas ao herói que entrou no labirinto com o propósito de derrotar o Minotauro. Nesse sentido, Jonas é Teseu. Em Dark, há pelo menos três representações do labirinto mítico: a caverna, com sua rede de passagens subterrâneas; a floresta negra, que cerca a cidade; e as viagens no tempo, recurso narrativo que se tornou uma convenção das histórias de ficção científica.

Alguns personagens eventualmente se perdem no fluxo temporal, outros fracassam em suas tentativas de mudar a história. A série, então, relaciona esse tema à ciência e à filosofia. No quinto episódio, a policial Charlotte Doppler (Karoline Eichhorn) conta ao colega Ulrich (Oliver Masucci) sobre seu avô. Diz que era obcecado pelo ciclo solar, pelas teorias do Big Bang e do Big Crunch, e pelo Eterno Retorno de Nietzsche. Charlotte foi criada pelo relojoeiro e cientista H. G. Tannhaus (Christian Steyer), cujo livro “A Journey Through Time” (uma jornada através do tempo) foi publicado pela editora Mino Tauros. Apesar de ser um easter egg (surpresa escondida na trama), essa é mais uma referência ao monstro nas sombras.

O determinismo alemão e a ideia de destino

Os fios vermelhos que Martha entrega ao intérprete de Teseu, e que Jonas percorre na caverna com as mãos, representam o destino. No entanto, além de sua alusão ao mito de Ariadne, há também uma relação com a mitologia asiática. De acordo com uma antiga lenda chinesa, os fios vermelhos do destino representam os rumos da vida de um indivíduo e as conexões entre as pessoas.

O destino – ideia importante em Dark – é o poder misterioso capaz de governar tudo o que existe no universo e determinar o curso dos eventos, bem como o devir da história humana. Isto é, o processo de mudança constante pelo qual passam todos os seres e todas as coisas. Em outras palavras, o destino determina tudo o que acontecerá, conforme o que está escrito no “livro dos destinos”. Tem relação, portanto, com outro tema central na série: o determinismo, ou seja, a negação do livre-arbítrio. De acordo com essa doutrina filosófica, tudo no universo sujeita-se à necessidade, inclusive a vontade dos seres humanos. “Necessário”, nesse sentido, é aquilo que não pode ser de outra maneira.

Nietzsche e o eterno retorno

Chegamos, então, às ideias do alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), um dos filósofos que mais influenciou o pensamento contemporâneo. Algumas de suas ideias são essenciais para entendermos a série Dark. O eterno retorno, por exemplo. Este conceito vincula-se a uma doutrina dos antigos filósofos gregos, sobre o movimento cíclico absoluto e infinitamente repetido de todas as coisas. Em Assim falou Zaratustra (1883-5), Nietzsche diz que tudo passa e retorna, ou seja, a roda gira eternamente. Em Ecce homo (1888), trouxe a ideia do eterno retorno: se o tempo não é linear, não faz sentido distinguir entre o “antes” e o “depois”. Se tudo retorna, o futuro já é um passado, tanto quanto o presente. Ou seja, se o passado se repete, o sofrimento continuará sendo experimentado repetidas vezes. Além disso, vale lembrar que Nietzsche escreveu um poema chamado “Lamento de Ariadne”.

Em Dark, os eventos se repetem ao longo da jornada de Jonas e Martha, por mais que os protagonistas tentem mudá-los. Isso ocorre nos três “tempos”, embora haja diferenças sutis entre eles. O eterno retorno é, portanto, a base da série, que une mitologia, filosofia e ficção científica. Isso porque, além do recurso das viagens no tempo, Dark tem uma narrativa “quebra-cabeça”, como a dos filmes Estrada Perdida (1997), Amnésia (2000), Donnie Darko (2001) e A Origem (2010). O que as produções desse tipo têm em comum? Ora, tentam nos absorver na dinâmica da narrativa, distorcendo ou quebrando o tempo. Seus personagens vão de encontro com o destino, enquanto tentam montar suas peças fragmentadas.

Referências

Dicionário de mitologia grega e romana (2011), de Pierre Grimal.

Dicionário básico de filosofia (1991), de Hilton Japiassu e Danilo Marcondes.

“Mistério de Ariadne segundo Nietzsche” (Cadernos Nietzsche, 2006), por Gilles Deleuze.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. O mito de Ariadne em Dark: os fios do destino, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/o-mito-de-ariadne-em-dark/. Acesso em: 30/03/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

Uma resposta

  1. Sou obcecada por essa série 2022 e eu sigo ainda voltando a essa série.
    Tenho a sensação que algo nessa série me toca profundamente.

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