Darmok e a comunicação pelos mitos em Star Trek

Em Star Trek: A Nova Geração (TNG) há muitas alusões à mitologia mundial. Isso não é novidade para quem é fã da série. Mas um episódio, em especial, vai além e busca referências na antiga Suméria. Em Darmok, logo que descobrem uma raça desconhecida, os oficiais da Enterprise têm dificuldades para se comunicar. Esse é um problema do contato entre povos. Então, com o propósito de entender os alienígenas, os humanos buscam respostas em Shakespeare e Gilgamesh. O resultado é uma história que valoriza a comunicação pelos mitos e mostra como eles ganham novos sentidos em diferentes contextos.

O mistério dos tamarianos

Em Darmok, quinto episódio da temporada dois, a nave Enterprise segue viagem rumo a um planeta ermo. Próximo a ele vivem os “Filhos de Tama” ou “tamarianos”, uma raça de homens-lagarto pacíficos, mas também enigmáticos, já que outras expedições nunca puderam compreendê-los.

O capitão Jean-Luc Picard (Patrick Stewart) duvida que os tamarianos sejam mesmo incompreensíveis, pois, de acordo com sua experiência, a comunicação é questão de paciência e imaginação. Pensa assim até descobrir que eles falam por metáforas. Logo em seguida, Picard é levado ao planeta El-Adrel pelo capitão dos tamarianos, com quem tenta se comunicar por vários dias, sem sucesso.

Os limites da comunicação

Em reunião com seus colegas da Enterprise, o androide Sr. Data (Brent Spiner) expõe suas conclusões. Conforme deduz, os tamarianos se comunicam por uma narrativa imagética, isto é, referindo-se a pessoas e lugares de seus relatos mítico-históricos. Por isso os humanos não os entendem, pois essas imagens não fazem sentido fora de sua cultura.

Analogamente, dizer “Julieta em sua sacada” causaria a mesma estranheza nos tamarianos. É o que pensa a conselheira Deanna Troi (Marina Sirtis). Mas o que ela quis dizer com essa frase, que nos leva à mais famosa tragédia de Shakespeare? De acordo com a Doutora Beverly Crusher (Gates McFadden), a frase cria uma imagem de romance, e a imagem é tudo para os tamarianos. É como se comunicam e pensam, pois encarna seus processos emocionais e de pensamento.

Em outras palavras, para se comunicar com os tamarianos não basta entender como pensam. Isso porque, se eles não sabem quem é Julieta ou o que ela fazia na sacada, a imagem em si não faz o menor sentido. Da mesma forma, se os humanos não conhecem os seus mitos, não são capazes de entender suas metáforas.

Capitão Picard, sentado em uma pedra, em posição reflexiva, diante do capitão alienígena, deitado na grama ferido. É noite, entre eles há uma fogueira e eles tentarão se comunicar através dos mitos.

Nos anos 1950, uma antropóloga norte-americana chegou a uma conclusão muito parecida. Ao contar Hamlet, de Shakespeare, para os moradores de uma tribo africana, Laura Bohannan notou que as histórias não têm uma compreensão universal. Descrevo abaixo os detalhes dessa pesquisa de campo, mas o artigo você pode baixar no final do post.

Shakespeare entre os Tiv

Em sua viagem à África Ocidental, Bohannan julgava-se pronta para viver entre os Tiv. A tribo era remota e quase inacessível. Seu líder era um homem velho e sábio, chefe de um grupo com cerca de 140 pessoas, que eram ou familiares seus ou esposas e filhos deles. Para Bohannan, Shakespeare era universal e qualquer um seria capaz de entendê-lo. Haveria, portanto, uma única interpretação para Hamlet. Depois de dois meses entre os Tiv, ela viu a chance de provar sua hipótese.

Mas o óbvio e o lugar-comum são duros de se explicar e justificar para os membros de uma outra cultura. Quando contou Hamlet para os sábios da tribo, Bohannan viu os Tiv interpretarem a história à luz de sua própria cultura, ou seja, deram a ela um novo sentido a partir de sua visão de mundo. Isto, sem dúvida, é o que fazem todos os povos. Os sábios também ficaram intrigados, pois aos seus olhos os ocidentais eram incapazes de entender sua própria literatura. As barreiras culturais e linguísticas, portanto, levam a uma narrativa totalmente distinta. Em outras palavras, a perspectiva afeta a percepção. Esta é a mensagem de Darmok.

A mitologia dos tamarianos

Comandante tamariano em primeiro plano, no telão da Enterprise, com rosto reptiliano e trajes prateados. Atrás dele, no fundo, há outros dois oficiais tamarianos.

Para entender os tamarianos, deve-se ter em mente a narrativa de onde tiram suas imagens. Ou seja, deve-se conhecer seus mitos. Essa é a conclusão dos oficiais da Enterprise, mas eles sabem das dificuldades. Cabe a Picard mostrar que é possível, sim, entender a lógica da língua alienígena. Em sua estadia no planeta, ele aos poucos consegue se comunicar, ainda que de forma rústica, através dos mitos.

Mais tarde, o humano e o alienígena sofrem o ataque de uma fera selvagem. Por muito pouco não conseguem escapar. No leito de morte, o capitão tamariano faz um último pedido: quer ouvir uma história da Terra. Picard se diz um mau contador de histórias, assim como Bohannan disse ao sábio Tiv. Mas os fãs conhecem Picard e sua falsa modéstia. Em seguida, o capitão usa frases de efeito para contar uma antiga lenda da mitologia oriental: a epopeia de Gilgamesh.

A narrativa de Gilgamesh é única, pois é obra dos povos do antigo Oriente Médio, que a escreveram em pedra no III milênio a.C. De acordo com a narrativa, Gilgamesh era o rei da Suméria, nas terras férteis da Mesopotâmia. Um herói nobre e desbravador, ele partiu em busca da imortalidade. Em sua jornada, cheia de perigos e desafios, cruzou terras fantásticas e mundos de sonho.

Gilgamesh entre os filhos de Tama

Gilgamesh. Um rei. Em Uruk. Ele atormentava seus súditos. Ele os deixava irritados. Eles gritavam bem alto: “mande um companheiro para o nosso rei. Poupe-nos da loucura dele”. Enkidu. Um homem selvagem. Da floresta. Entrou na cidade. Eles lutaram no templo. Eles lutaram nas ruas. Gilgamesh derrotou Enkidu. Eles se tornaram grandes amigos. Gilgamesh e Enkidu. Em Uruk. Os novos amigos foram para o deserto juntos, onde o grande touro do céu estava matando homens às centenas. Enkidu pegou o touro pelo rabo. Gilgamesh enfiou a espada nele. Eles foram vitoriosos. Mas Enkidu caiu no chão, atingido pelos deuses. E Gilgamesh chorou lágrimas amargas, dizendo: “Ele, que era meu companheiro, pelas aventuras e dificuldades, se foi para sempre”.

Picard, para o capitão tamariano.

No momento em que Picard vai concluir a história, o tamariano morre diante dos seus olhos, como se caísse no sono. A morte do alienígena lembra o fim de Enkidu, o grande amigo de Gilgamesh. Na lenda, eles se tornam companheiros de aventuras. Completavam-se de tal forma que só a morte poderia separá-los. Assim como Picard e o tamariano.

A moral de Darmok (e dos mitos)

No final do episódio, Picard volta à Enterprise. Mostrando que agora fala a língua dos tamarianos, diz que o capitão morreu. Em seguida, vemos Picard em sua cabine, onde lê hinos homéricos em grego, “as raízes das nossas metáforas culturais”. Nas suas palavras, “mais conhecimento da nossa própria mitologia pode nos ajudar a compreender a deles [dos tamarianos]“. Mensagem inspiradora do capitão da U.S.S. Enterprise sobre o valor dos mitos e da cultura na comunicação. Assim termina Darmok.

Referências

Epopeia de Gilgamesh.

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A lenda de Ardra

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Darmok e a comunicação pelos mitos em Star Trek, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/darmok-e-a-comunicacao-pelos-mitos-em-star-trek/. Acesso em: 29/03/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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