David Lynch e a meditação transcendental

Na obra do cineasta norte-americano David Lynch há marcas da estética surrealista, bem como do expressionismo e do realismo. Afinal, as artes plásticas têm sido para ele uma fonte de inspiração, não só nos filmes, mas também nas suas pinturas e fotografias. Na série “O Cinema de David Lynch” veremos como vários estilos e temas míticos se fazem presentes em seu trabalho. Em primeiro lugar, vamos descobrir na prática da Meditação Transcendental a grande centelha da criatividade desse artista.

A vida artística

Embora seja mundialmente conhecido por filmes cult e pela série Twin Peaks, David Lynch é um Artista com “A” maiúsculo. Sua obra não se limita às produções para o cinema e a TV, pois engloba pintura, escultura, colagens, mobílias, fotos e quadrinhos. Dos principais cineastas do nosso tempo, Lynch é sem dúvida um daqueles que explorou as mais diversas formas artísticas. Com seus filmes, levou o cinema ao encontro de todas essas formas e criou uma obra inegavelmente ampla e complexa.

A paixão de Lynch pelas artes aflorou na infância, nos anos 1950. Antes de mergulhar no cinema, Lynch se dedicou à pintura; desde então, nunca deixou de pintar. Ainda jovem, adotou a filosofia da “vida artística”, ou seja, passou a viver sua condição de artista. Lynch se vê como um pintor, o que de fato é e deixa claro no documentário The Art Life (2016). Em virtude de seu estilo singular e original, Lynch se tornou um artista de peso, que influenciaria tantos outros ao longo dos anos.

O início da carreira de David Lynch

Em 1965, no momento em que decidiu seguir carreira de artista, Lynch se matriculou na Pennsylvania Academy of Fine Arts, na Filadéfia. Lá, nos seus anos de estudo, acabou chegando à conclusão de que faltavam à pintura duas dimensões: som e movimento. Essa percepção levou o jovem artista a obter uma câmera de 16mm, com a qual fez seus primeiros filmes experimentais. O curta-metragem Six Men Getting Sick (1967) faz ecoar o som insistente de uma sirene; o perturbador The Alphabet (1968), com apenas quatro minutos, expressa de forma bruta sua desconfiança na linguagem. Mas foi o posterior The Grandmother (1970) que trouxe à tona seu universo poético e sombrio.

Em seus filmes, há ecos de vários movimentos artísticos, do surrealismo ao expressionismo, bem como a influência de seus principais expoentes; não só de pintores como Francis Bacon, Edward Hopper, Salvador Dalí e René Magritte, mas também dos escritores William Faulkner, Lewis Carrol, Franz Kafka, E. T. A. Hoffman, entre outros. Tais ecos são evidentes em Eraserhead (1977), O Homem Elefante (1980) e Veludo Azul (1986), por exemplo. Ainda que trilhasse o caminho do cinema, Lynch nunca deixou de pintar. Até hoje, em seu ateliê na Califórnia, Lynch se dedica à sua arte fantástica e sombria.

Lynch e a meditação transcendental

No livro Em águas profundas: criatividade e meditação (2006), o artista visual, homem do tempo e amante de quinoa revela o segredo de sua criatividade: “entrar em águas profundas”. “Ideias são como peixes”, escreve Lynch. “Se você quer pegar um peixinho, pode ficar em águas rasas. Mas se quer um peixe grande, terá que entrar em águas profundas”. Assim, ele é capaz de acessar um oceano de pura consciência.

Lynch se refere, metaforicamente, é claro, à Meditação Transcendental, técnica que aprendeu há cerca de 45 anos. De acordo com o artista, ele deve às práticas diárias o dom de “pegar” grandes ideias e levá-las à tela. Ao longo dos anos, vimos Lynch transpor suas explorações no Campo Unificado da Consciência em poemas visuais desconcertantes. Estrada Perdida (1997), Cidade dos Sonhos (2001), Império dos Sonhos (2006) – cada filme é uma viagem mais estranha e surreal do que o anterior. Mas é Twin Peaks: O Retorno (2017) que traz o olhar mais íntimo de Lynch para a meditação e suas jornadas pelo inconsciente.

A meditação e o reino espiritual em Twin Peaks

Em O Retorno, várias imagens evocam a Meditação Transcendental, o budismo, a espiritualidade védica e aspectos da mitologia asiática. Vamos focar no personagem Dale Cooper (Kyle MacLachlan), que certamente é um alter ego de Lynch. A sua prisão no reino sombrio do “Black Lodge”, por exemplo, pode significar o movimento da alma em direção à pureza. Afinal, conforme explica o delegado Hawk (Michael Horse): “A lenda diz que todo espírito deve passar por ali a caminho da perfeição”.

Na série original dos anos 90, Cooper sonha no Quarto Vermelho e vê muito do que há do lado de fora, enquanto permanece sentado numa poltrona. Não é difícil imaginá-lo como um praticante de meditação que prova um estado de sonho, movendo-se pelo reino espiritual. Em sua viagem de volta à Terra, em O Retorno, Cooper cruza paisagens de horror e terras oníricas; com tais imagens, Lynch não estaria explorando os níveis de consciência da Meditação Transcendental? (Há sete níveis ao todo). Seja no mundo real ou espiritual, Cooper mergulha na essência dessa prática.

Veja a palestra de David Lynch sobre Meditação Transcendental: clique aqui (em inglês).

Referências

Em águas profundas: criatividade e meditação (2006), de David Lynch.

Retrato de cineasta pintando en el estudio: relaciones entre pintura y cine en David Lynch: The Art Life (2016)“, de Ángel Justo Estebaranz (2018).

How David Lynch Explores the Mythology of Transcendental Meditation in Twin Peaks: The Return“, de Daniel J. Cecil (2017).

“As marcas surrealistas no cinema de David Lynch”, de Rogerio Ferraraz (Revista Olhar/UFSCAR, 2001).

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. David Lynch e a meditação transcendental, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/david-lynch-e-a-meditacao-transcendental/. Acesso em: 30/10/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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