Garnet como Helena de Tróia: Final Fantasy IX

A trama de FFIX começa no reino de Alexandria, onde a Prima Vista aporta para raptar a princesa Garnet Til Alexandros. Com a aeronave vem a trupe Tantalus, que não passa de fachada para um grupo de mercenários. Durante uma de suas peças, o travesso Zidane tenta fugir com a princesa e enfurece seu guarda-costas, que tenta protegê-la a todo custo. Mas ele não tem sucesso, pois Garnet quer ser sequestrada – para fugir da opressão de sua madrasta, a Rainha Brahne. Depois que a garota enfim consegue fugir, a Rainha declara guerra aos reinos vizinhos. Veremos como Garnet evoca a lenda de Helena, que se modificou ao longo do tempo, e a questão do rapto, sujeita a diferentes interpretações.

As relações entre Garnet e Helena

Na mitologia grega, Helena é a esposa de Menelau, por quem os gregos combateram durante dez anos em Tróia. Na Ilíada, ela é prisioneira em um mundo que via as mulheres como posses; está sujeita ao desejo dos deuses, em um universo governado por eles; e é estrangeira, vista como razão da guerra. Em FFIX, Garnet também se enquadra nesse papel de muitas restrições. Afinal, a princesa é refém da hereditariedade do trono e das ambições da Rainha de Alexandria, que se utiliza dela como instrumento de guerra. Não por acaso, age muitas vezes de forma autodepreciativa, culpando-se por eventos que fogem do seu controle, bem como pelo sofrimento dos demais personagens.

Outra analogia entre Garnet e Helena está na questão do rapto, recorrente na franquia Final Fantasy. Já no primeiro game da série, de 1987, um grupo de cavaleiros deve resgatar a Princesa Sara do maligno Garland. Em FFIV (1991), o vilão Golbez rapta Rosa, interesse amoroso do herói Cecil. Tem-se aqui o mote dessas histórias, mas a relação com a mitologia grega sobressai em FFIX. O rapto de Garnet leva à guerra entre nações; assim como, na Ilíada e na Odisseia, Helena é agente causador da guerra. Os poemas homéricos a consideram a mulher pela qual os gregos lutaram em Tróia.

A questão do rapto

Heródoto narrou como os gregos, por causa de uma mulher, equiparam sua frota, desembarcaram na Ásia e destruíram o reino de Príamo. A história de Helena é, portanto, a história da Guerra de Tróia. Tudo começou quando Páris, filho do rei, conhecedor da tradição grega de capturar mulheres “asiáticas”, quis ele próprio raptar e possuir uma mulher grega. Então, raptou Helena. Por vias diplomáticas, os gregos pediram que a devolvessem; mas seus esforços foram em vão e culminaram na guerra.

Para o filho de Ulisses, a rainha lamenta-se que o “esforçado herói” tenha ido a Tróia para “sustentar luta feroz por causa destes meus olhos de cadela”. Ela se descreve com um forte termo de desonra, usado apenas para quem cometia atos inaceitáveis, o que indica culpa.

Depois de Homero, sugeriu-se que Helena estaria de acordo com seu rapto. Isso porque a rainha não teria hesitado em fugir com Páris, deixando sua filha Hermione e levando consigo vários tesouros, na calada da noite.  Na visão dos persas, conforme registrou Heródoto, “(…) sem o seu próprio consentimento decerto não teriam as mulheres sido raptadas”. No canto III da Ilíada, Helena joga com a compaixão de Príamo. Em primeiro lugar, diz preferir estar morta a ter ido a Tróia. Posteriormente, fala como a esposa que segue o marido, por meio da locução “antes de para cá vir com o teu filho”. Em outras palavras, a rainha parece tratar sua chegada a Tróia mais como fuga do que como rapto.

Helena, afinal, quis ser raptada?

“Venerando és tu para mim, querido sogro, e terrível: quem me dera ter tido o prazer da morte malévola, antes de para cá vir com o teu filho (…)”. Helena, Canto III da Ilíada.

Quando afirma que “para cá veio” com “teu filho”, Helena divide com o marido – e com Príamo, por consequência – a responsabilidade pela sua fuga. Ao referir-se a Páris como “teu filho”, Helena evita nomeá-lo; assim, elimina qualquer laço com o troiano e expressa até certa aversão por ele. Na Ilíada, a escolha da rainha paira no ar. Na Odisseia seu sofrimento talvez seja o de quem não quer mais estar em Tróia, ainda que antes quisesse. Depois da guerra, Helena diz para o filho de Ulisses que está satisfeita com a ação de seu pai, e que deseja retornar. Nas suas palavras,

Meu coração saltava de

alegria. No meu íntimo eu sonhava com o regresso.

Queria ver minha casa. (Od. 4, 105)

Quanto à heroína de FFIX, ela não só quer fugir, como também colabora com seus raptores. No início do game, o personagem Kupo se antecipa: “Eu acho que a Rainha Brahne está tramando alguma coisa… Mas da princesa Garnet eu suspeito ainda mais!”. (A princesa revelará posteriormente que vinha treinando para a sua fuga, razão pela qual era alvo de desconfiança). Por fim, Garnet foge do castelo disfarçada e tenta se esconder na Prima Vista. Lá, reencontra Zidane, há algum tempo em seu encalço. “Eu tenho um favor que gostaria de pedir a você… Desejo ser sequestrada… imediatamente”, diz. “Tudo bem, então, Alteza! Darei o meu melhor para sequestra-la”, responde o rapaz.

O rapto de Garnet: de quem é a culpa?

O guarda-costas real Adelbert Steiner, cuja função é proteger a princesa, acaba se envolvendo com seu rapto ao deixar Alexandria à bordo da Prima Vista. Depois que a aeronave cai na Floresta do Mal, sob ataque das forças palacianas, Steiner culpa Zidane pelo desastre. “Isso é tudo culpa sua!”, diz. “Nada disso teria acontecido se você e seu bando não tivessem raptado a princesa!”. Garnet então o interrompe: “Steiner… Eu deixei o castelo por vontade própria”. Zidane arremata, com deboche: “Que coincidência, não é? Fomos para apanhá-la, e ela queria ser apanhada”.

Diante do jeito mulherengo de Zidane, Steiner continuará culpando o rapaz na primeira parte do game. Porém, a cumplicidade é confessa e Garnet de fato colaborou com seus raptores. Contudo, havia mais alguém por trás do plano. Posteriormente, quando o bando chega a Lindblum, o Regente Cid Fabool, tio da princesa, revela ser o mandante do rapto, o que fez com o propósito de protegê-la. Há outro paralelo interessante, pois o próprio Regente teve sua esposa sequestrada. Isso reforça a importância da questão do rapto como tema, em FFIX – e em toda a franquia.

A personagem feminina que sofre

Garnet é a personagem feminina que sofre. Seu rapto desencadeia eventos que alteram drasticamente a vida dos demais personagens, e ela se culpa por isso. Ainda no início do game, declara: “Causei tantos problemas a todos… O Tio Cid sabia de tudo… É por isso que pediu ao Tantalus para me tirar de Alexandria. Não importa o quanto tente, estou sempre um passo atrás em tudo… Sou tão indefesa”. Esse arquétipo vem de Helena, vista como causa da guerra. Na Ilíada, sua fala para Heitor revela um nível de desespero que supera as emoções aparentes nas suas declarações a Príamo:

Cunhado da cadela fria e maldosa que eu sou,

quem me dera que naquele dia quando me deu à luz minha mãe

a rajada maligna da tempestade me tivesse arrebatado

para a montanha ou para a onda do mar marulhante,

onde a onda me levasse antes de terem acontecido tais coisas (Il. 6, 245).

Em resumo, a auto-depreciação de Helena atinge o ápice no desejo manifesto de não estar viva. Roisman sugere que suas falas sejam limitadas pelo seu gênero, pela sua “estrangeiridade” e pela visão social da culpa. Tais limites se impõem igualmente sobre Garnet, cujas falas têm esse mesmo tom. Com Zidane, ela desabafa: “Tudo o que tentei fazer por mim mesma foi um fracasso total. Não teria conseguido parar a minha mãe. Por vezes quase perdi a esperança… (…)”. “Você não tem que se sentir tão responsável”, diz o rapaz. “Mas eu me sinto!”, responde a princesa.

A luta por autonomia

Apesar de sua imagem sofredora, Homero fez de Helena uma figura igualmente complexa, que luta por autonomia, expressão e pertencimento, apesar de tantas restrições.No canto III da Ilíada, a rainha se afirma enquanto mulher criativa, independente e responsável. Faz isso por meio da tecelagem, ocupação típica das mulheres livres e da esposa casta nos tempos homéricos, conforme sabemos pela Odisseia.

De acordo com Roisman, Helena faz da ocupação feminina um meio de comunicação e veículo de autoexpressão. Assim, dá vazão ao sofrimento de si e dos outros, afirmando sua liberdade e responsabilidade. O fato de Helena não falar enquanto tece é característica definidora, pois ao passo que o silêncio cria uma aura de misticismo, enfatiza a impotência e o isolamento. Esse elemento também está presente em FFIX. Quando enfim retorna a Alexandria, Garnet é capturada e sentenciada à morte pelos agentes reais. Steiner e seus companheiros, convencidos de que a Rainha está fora de si e planeja conquistar todas as nações, unem forças para resgatar a princesa.

A afirmação de Garnet

Por fim, Garnet foge novamente e sai em nova jornada. Retornará ao lar pela segunda vez após a morte da Rainha, para assumir o trono. Porém, sua coroação é precedida por um ataque em larga escala a Alexandria, que termina devastada pelas forças inimigas. Garnet e seus amigos acordam em Lindblum no dia seguinte, salvos da destruição. Muda pelo trauma, a princesa reflete sobre tudo o que passou. Não só descreve o seu sofrimento, como também chega ao ápice da auto-depreciação e da culpabilidade:

Alexandria se foi… Eu ainda não consigo acreditar… Tantas pessoas mortas. Os sobreviventes estão desabrigados e desamparados. Como isso pode ter acontecido? […] A culpa é minha! Eu nunca deveria ter fugido de casa! Eu envolvi todos nisso: […] Todos… Se eu tivesse ficado com a Mãe, talvez pudesse tê-la impedido… É tudo culpa minha… Eu não deveria ter assumido o trono… Pensei que poderia fazer reparações, mas… Eu só trouxe miséria a todos… O que vou fazer agora?…

FFIX é, sobretudo, uma história de regresso que deve muito à lenda de Ulisses. E é em sua jornada mundo afora que Garnet ganha forças para sobreviver à opressão. Após perder a voz, a princesa potencializa suas artes da cura e desenvolve poderes mágicos que lhe permitem invocar poderosos seres sobrenaturais (eidolons). Tais habilidades não só protegem seus companheiros, como também são veículos de auto-expressão, pois afirmam a sua liberdade como indivíduo. Posteriormente, depois que volta a falar, Garnet corta o próprio cabelo com uma adaga. Esse é um rito de passagem de seu amadurecimento como personagem feminino; em outras palavras, é a princesa que se torna heroína.

Referências

Dicionário de mitologia grega e romana (2011), de Pierre Grimal.

Ilíada, de Homero (Trad. Frederico Loyrenço, 2013).

Odisseia, de Homero (Trad. Donaldo Schüler, 2011).

História, de Heródoto (Trad. J. Brito Broca, 2001).

“Helen in the Iliad; Causa Belli and Victim of War: From Silent Weaver to Public Speaker” (American Journal of Philology, 2006), por Hanna Roisman.

“Final Fantasy IX Review” (GameSpot, 19/07/2000), por Andrew Vestal. Em: https://www.gamespot.com/reviews/final-fantasy-ix-review/1900-2605459/.

“Final Fantasy VIII: Full Game Script” (GameFAQs, 2006), por P. Summers. Em: https://gamefaqs.gamespot.com/ps/197338-final-fantasy-ix/faqs/42207.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Garnet como Helena de Tróia: Final Fantasy IX, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/garnet-como-helena-de-troia-final-fantasy-ix/. Acesso em: 21/11/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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