O Funeral das Rosas: uma releitura queer de Édipo Rei

O Japão dos anos 1960 viu nascer um filme enigmático feito uma esfinge, que se tornaria muito influente nas décadas seguintes. O Funeral das Rosas (Bara no Sôretsu, 1969), de Toshio Matsumoto, é uma pérola do cinema underground, da pop art e da contracultura japonesa. É, sobretudo, uma releitura queer ousada e subversiva da tragédia Édipo Rei, de Sófocles.

Anos 60: o cinema em tempos de mudança

Para compreender O Funeral das Rosas, devemos primeiramente refletir sobre as mudanças profundas que marcaram o cinema na década de 1960. Conforme lembra Mark Cousins, aqueles anos assistiram à aparente destruição do consenso social, bem como à sexualização da cultura e ao consumismo desenfreado no Ocidente. Em meio às revoltas contra governos policialescos, a guerra e o conformismo, a questão da igualdade política, racial e de gênero ganhou relevância nunca antes vista.

Como resultado, novos movimentos cinematográficos nasceram em todo o mundo. Para citar alguns exemplos: a Nova Hollywood, nos Estados Unidos; os Cinemas Novos, no Brasil e na Alemanha; e as Nouvelles Vagues, na França, no Leste Europeu e no Japão. Juntos, estes movimentos ajudaram a criar novas linguagens para o cinema. Enquanto nos EUA e na Europa Ocidental o mote era desafiar as normas estilísticas vigentes, em países com ditaduras e herança colonial as questões de conteúdo sobressaíram.

Novas linguagens cinematográficas

Aparentemente, nunca antes na história do cinema os esquemas hollywoodianos tradicionais foram tão rejeitados. O desenvolvimento tecnológico trouxe novos métodos de iluminação e cinematografia, novos gravadores e sistemas de captação de som, bem como novas câmeras, películas e lentes. Tudo isso deu maior rapidez e mobilidade aos equipamentos, e novas possibilidades de experimentação a uma nova geração de cineastas. Estes, do ponto de vista temático, ao passo que se opunham à história tradicional, passaram a abordar e recontar dramas pessoais. No Japão não foi diferente.

No pós-Segunda Guerra, o cinema japonês se dedicou a uma leitura sociológica dos dramas vividos. Isso porque, assim como o sueco Ingmar Bergman (1918-2007), alguns dos seus diretores demonstravam preocupação com as tragédias do tempo presente. Com efeito, ao invés de apostarem em obras mais pessoais e atuais, tinham o hábito de remexer nas cinzas da derrota e do desastre nuclear. Enquanto isso, na França, Truffaut falava em um cinema mais individualista e autobiográfico. Navegando nessa maré, para as novas gerações de cineastas japoneses era claro que algo precisava mudar.

Matsumoto e o novo cinema japonês

Nas palavras de Nagisa Ōshima (1932-2013): “desde os primórdios do cinema sonoro, deu-se como pressuposto que as imagens existem para contar uma história”. O cineasta propôs, então, o contrário: “fazer um cinema em que a imagem e a montagem se convertessem na sua verdadeira essência”. Nesse sentido, também seria necessário contrariar os métodos tradicionais do cinema japonês, tais como o naturalismo, o melodrama e o sentimento de vitimização. Ōshima se tornaria um dos nomes mais famosos do novo cinema japonês. Ele se dedicou, principalmente, a retratar as contradições e tensões do pós-guerra, ao mesmo tempo que criticou o conformismo da sociedade japonesa.

Foi esse contexto que  viu nascer O Funeral das Rosas, que sobe ao panteão das obras-primas do cinema queer ao lado de filmes contemporâneos seus igualmente relevantes, como Pink Narcissus (1971). Naquele tempo, Toshio Matsumoto e outros cineastas fizeram dos mitos ocidentais veículos privilegiados de contra-estética e contra-política; em outras palavras, do movimento que caracterizou a nouvelle vague japonesa, de acordo com David de Barros. Afinal, o uso de elementos modificados da mitologia grega – e da mitologia asiática – representava uma via de combate importante para tais cineastas.

Vivências queer em O Funeral das Rosas

Em meio à subcultura gay japonesa, acompanhamos a vida de Eddie, travesti, homossexual e entertainer erótico. Através de flashes da sua infância, sabemos que foi abusada e depois abandonada pelo pai, e que sua mãe pouco se importava com ela. O cabaré Genet, onde passou a trabalhar posteriormente, é o reduto de personagens não-conformistas em termos de gênero e sexualidade. A ambivalência das vivências queer é própria do discurso político e social da nouvelle vague japonesa. Nesse sentido, O Funeral das Rosas emergiu como alternativa e desafio à rígida sociedade heteronormativa.

O filme de Matsumoto é, sem dúvida, uma obra difícil de ser classificada. Em termos de gênero, combina melodrama, horror, comédia e documentário. Quanto à forma, com jumpcuts e montagem não-linear no estilo da vanguarda política e estética do Ocidente, adere ao modo experimental, incorporado à cena underground japonesa. As influências da pop art também se destacam na estética fragmentada, nas sequências de fotogramas, na ideia de filme como colagem e no recurso à metalinguagem. O enredo é solto, tanto quanto sua abordagem, que escapa das amarras de forma e gênero.

O Funeral das Rosas é um produto da sua época; isto é, do momento em que os cineastas de uma nova geração quebravam e redefiniam os limites do fazer cinematográfico. Faziam isso através de diferentes experimentações com a forma fílmica. Nas palavras de um dos excêntricos personagens de Matsumoto: “todas as definições de cinema foram eliminadas. Todas as portas estão abertas agora”.

Relação com o mito de Édipo

Por fim, Eddie assassina a mãe e tem relações sexuais com o pai. Esta é uma releitura queer e uma inversão do mito de Édipo; mais propriamente, da tragédia de Sófocles – Édipo Rei –, na qual o célebre herói grego mata o pai e comete incesto com a mãe. Adaptações desse mito são recorrentes no cinema, a exemplo do Édipo Rei (1967), de Pasolini, e A Tragédia de um Rei (1968), de Saville. Também faz eco no suposto “complexo de Édipo” de Norman Bates para com sua mãe no Psicose (1960) de Hitchcock. A este filme, aliás, Matsumoto presta homenagem ao recriar parcialmente a cena do chuveiro.

O Funeral das Rosas ganha destaque, portanto, como releitura criativa e imaginativa do mito, critérios que definem uma boa adaptação nos termos de Linda Hutcheon. Isso porque o filme não se limita a alusões ou referências pontuais. Pelo contrário, é uma apropriação que vai à essência mítica e a reinterpreta com nova roupagem. Assim, no contexto da sua realização, o mito grego reemerge como elemento polivalente capaz de se relacionar com questões socioculturais contemporâneas; mais especificamente, com a subcultura gay japonesa e as vivências queer de finais dos anos 60. Não por acaso, o filme de Matsumoto entrou para a história do cinema como uma obra-prima revolucionária e não-conformista.

O filme O Funeral das Rosas foi exibido em julho de 2023 no ciclo LGBTQ+ do Cineclube Matrizes Clássicas, do Departamento de Letras da Universidade Federal Fluminense. Para saber mais, leia o conteúdo disponível no site do Laboratório de Estudos Clássicos (LEC-UFF).

Descubra também as relações entre o músico Lou Reed e o complexo de Édipo.

Referências

“Why Funeral Parade of Roses is a landmark of Japanese queer cinema” (British Film Institute, 16/06/2020), por Sarah Cleary. Em: https://www.bfi.org.uk/features/why-funeral-parade-roses-landmark-japanese-queer-cinema.

“Édipos, Sísifos e Onis: Reescrita de mitos em Matsumoto, Teshigahara e Shindô” (Teatro do Mundo, v. 6, 2012), por David Pinho Barros.

Dicionário da mitologia grega e romana (2011), de Pierre Grimal.

A Theory of Adaptation (2006), de Linda Hutcheon

Historia del cine (2005), de Mark Cousins.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. (ed.)O Funeral das Rosas: uma releitura queer de Édipo Rei, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/o-funeral-das-rosas-uma-releitura-queer-de-edipo-rei/. Acesso em: 26/04/2025.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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