O simbolismo do cervo em The Crown: o teste de Diana

Na sua 4ª temporada, The Crown trouxe de volta um simbolismo do filme A Rainha, de 2006. Também escrito por Peter Morgan, o criador da série, A Rainha mostra as consequências da trágica morte da Princesa Diana em agosto de 1997. Por sua vez, a série em questão tem a sua 4ª temporada ambientada nos anos 1980 e foca principalmente no malfadado casamento de Diana (Emma Corrin) com o príncipe Charles (Josh O’Connor). Mas, tanto no filme quanto na série da Netflix, um cervo imperial tem um papel de destaque. Importante desde a antiguidade, esse majestoso animal amarra o início e o fim da história de Diana com a Casa Real de Windsor. Vamos entender o simbolismo do cervo!

O dilema de Elizabeth II em A Rainha

Sob a direção de Stephen Frears, o filme retrata uma desmoralizada Rainha Elizabeth II (Ellen Mirren). A monarca vê o país se voltar contra ela e a família real depois que a Princesa Diana morre em um acidente de carro em Paris. O então primeiro-ministro Tony Blair (Michael Sheen) tenta convencê-la a voltar a Londres com o propósito de demonstrar publicamente seu luto. Contudo, esse é um assunto privado para a Rainha, de modo que ela decide ficar em Balmoral, seu castelo na Escócia. Em uma cena poética, a Rainha vê nos terrenos do castelo um majestoso cervo imperial com chifres de 14 pontas. Ela afugenta o cervo para longe dos caçadores, mas fica triste logo depois, ao saber que ele foi morto.

O teste de Diana em The Crown

Peter Morgan trouxe o cervo de volta em “The Balmoral Test” (O Teste de Balmoral), segundo episódio da 4ª temporada de The Crown. Durante o café da manhã, a família real conversa sobre um cervo com chifres de 14 pontas que surgiu nas terras do Castelo, algo que não ocorria há anos. A princesa Anne (Erin Doherty) e seu pai, o príncipe Philip (Tobias Menzies), disputam quem dará o primeiro tiro e planejam pôr a cabeça empalhada na sala de jantar. Os Windsor, então, saem à caça do cervo.

Mas é Diana quem acompanha Philip. E, tão logo avistam o cervo, o conselho da moça sobre a direção dos ventos ajuda o príncipe a dar um tiro certeiro. Ela, que impressiona pela inteligência e sagacidade, não só vence o Teste de Balmoral como também cai nas graças do seu futuro sogro. No fim do dia, a cabeça do cervo é finalmente pendurada na sala de jantar.

O que é Balmoral?

O Castelo de Balmoral fica na zona rural de Aberdeenshire, na Escócia, mas há tempos ocupa um lugar no coração dos monarcas britânicos. Foi o príncipe Albert que o adquiriu para sua esposa, a Rainha Vitória, em 1852. O casal teve nove filhos, gerando dezenas de famílias reais europeias que se espalharam por todo o continente. Vitória morreu em 1901, viúva, deixando Balmoral para Eduardo VII e, depois, para seus sucessores. O terrenos vastos e montanhosos do Castelo são frequentemente usados ​para esportes e caça. Rumores do Teste de Balmoral circularam na realeza, sempre relacionados às mulheres que se casariam com membros da família real – Diana, Catherine e Meghan, por exemplo. Conta-se que as recém-chegadas passaram por rigorosa provação em sua estadia no Castelo.

O simbolismo do cervo

Desde a pré-história, os animais têm um simbolismo de grande importância, muito por causa de sua relação com o ser humano. Tal simbolismo parte de três ideias principais: o animal como montaria, como objeto de sacrifício ou como forma de vida inferior.

Por exemplo, na luta entre um cavaleiro e um animal selvagem ou fabuloso, a vitória do primeiro pode levar à morte ou à domesticação do segundo. Esse é um dos temas mais comuns (presente em The Crown). O simbolismo do cervo também remonta à antiguidade. Durante a Idade Média, ele representava o caminho da solidão e da pureza. Em alguns emblemas, esse era o significado da cruz entre seus chifres.

A caça como rito de passagem

Em The Crown, a caça ao cervo é um rito de passagem. Este, de acordo com Van Gennep, acompanha toda mudança de lugar, estado ou posição social. Já Bourdieu prefere chamá-lo de “rito de consagração”, pois tende a “consagrar ou legitimar”. No caso de Diana, o teste de Balmoral não só a legitimou como noiva e futura esposa de Charles, como também marcou a sua passagem de plebeia a princesa.

Ártemis com uma corça. Mármore, Roma (séc. I-II d.C).

Embora não seja implausível, parece que a caça não fez parte do teste de Balmoral. De acordo com o Express, Diana foi alvo de críticas nos anos 1980 quando a acusaram de ferir um cervo que perseguiu com Charles, pouco antes do casamento. Por isso, ela teria jurado nunca mais participar de um esporte tão cruel.

Talvez o sentido de incluir teste na série seja mesmo simbólico e tenha uma relação com a mitologia grega. Sabemos que Diana é o nome latino de Ártemis, a deusa grega, casta e virgem da caça (clique para saber mais). Sendo assim, o cervo simboliza a pureza e a inocência de Diana. Há também o mito de Ifigênia, que conta do sacrifício do cervo sagrado no altar da deusa.

O peso do dever

Conforme vimos, o simbolismo do cervo está presente em The Crown e A Rainha. Na série, Charles se queixa por telefone com Camilla Parker-Bowles (Emerald Fennell), seu verdadeiro amor, pois seu casamento foi arranjado. Desiludido, o jovem príncipe desabafa e compara seu futuro ao do bicho morto. No filme, Elizabeth lamenta a morte do cervo, mas também não deixa de compará-la ao seu dilema. Ainda que discorde, a monarca decide consolar seu povo, em choque e aos prantos no arredores do palácio de Buckingham. A ideia é que, do contrário, a família real poderia ter um destino semelhante.

Em ambos os casos, o cervo simboliza a inevitabilidade do dever e das funções de cada membro da monarquia. É o peso da Coroa e do sangue azul. Em outras palavras, seja nas decisões mais íntimas ou nos protocolos reais, os membros da Casa de Windsor são impelidos a agir contra seus desejos.

Diga não à caça!

Referências

A economia das trocas simbólicas (1996), de Pierre Bourdieu.

Os ritos de passagem (1906), de Arnold van Gennep.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. O simbolismo do cervo em The Crown: o teste de Diana, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/o-simbolismo-do-cervo-em-the-crown-o-teste-de-diana/. Acesso em: 28/03/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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