Por que os nobres têm sangue azul?

Adaptação do romance LGBTQ+ de Casey McQuiston, Vermelho, Branco e Sangue Azul conta uma singela história de amor entre dois rapazes. A premissa parece simples, não fosse um deles filho da presidenta (Uma Thurman) dos Estados Unidos e o outro, o Príncipe de Gales. Ou seja, ambos são figuras públicas com posições políticas de destaque. Mais do que isso, Alex (Taylor Zakhar Perez) se tornou o novo queridinho da mídia em seu país logo que sua mãe se elegeu. Do outro lado do Oceano, Henry (Nicholas Galitzine) mora no coração dos ingleses, ainda que o herdeiro do trono seja seu irmão mais velho. Os rapazes se reencontram no casamento do primogênito, na Inglaterra, onde se apaixonam intensamente. Mas, se o romance parece impossível, uma das principais barreiras é o “sangue azul” de Henry e o peso das tradições monárquicas. Vamos descobrir de onde vem essa ideia e no que ela implica!

As origens do termo “sangue azul”

Afinal, por que se diz que os nobres têm o sangue azul? No curso da história, sabe-se que a cor roxa foi mais tradicionalmente associada à realeza e à monarquia, pois simbolizava a pompa e a riqueza. Assim sendo, por que o fluido que corre na veia das linhagens aristocráticas seria da cor azul? Para descobrir, devemos conhecer as origens desse termo, que remonta há séculos.

Em língua inglesa, o primeiro registro do termo “blue blood” – com o intuito de distinguir os nobres – data do início do século XIX. Contudo, essa é uma ideia que surgiu muito antes. Provavelmente veio do “sangre azul” da Espanha medieval, que designava as famílias mais ricas e poderosas do reino de Castela.

A fim de provar sua descendência “gótica pura”, os orgulhosos nobres espanhóis evitavam casar com pessoas de outras etnias; principalmente, com judeus e mouros (como os árabes eram nomeados na Península Ibérica desde que os berberes conquistaram a Espanha). Também chamavam a atenção para a palidez de sua pele, que tornava visível a cor azul das veias. A expressão provavelmente surgiu, portanto, como resultado de comparação da branquitude com o tom da pele de outros povos.

Azul é a cor mais nobre?

Em 1811, uma publicação inglesa afirmou que a nobreza de Valência dividia-se em três classes, isto é, de sangue azul, sangue vermelho e sangue amarelo. A primeira estaria “confinada às famílias que se tornaram nobres”. Acredita-se também que, no século IX, os militares da nobreza espanhola supostamente usavam esse traço a fim de provar seu “pedigree”. Em outras palavras, exibiam suas veias azuis para se diferenciarem dos inimigos mouros, de pele mais “escura”.

Decerto, essa era uma ideia comum no século XIX. Em 1834, a escritora infantil anglo-irlandesa Maria Edgeworth publicou o romance Helen, que reitera a noção da linhagem, bem como da distinção: “[Alguém] da Espanha, de alta estirpe e nascimento, do sangre azul, o sangue azul.” (Tradução de: “[Someone] from Spain, of high rank and birth, of the sangre azul, the blue blood”). Também devemos lembrar do simbolismo da cor azul, que representa pureza e sacralidade.

Distinções entre classes sociais

Blasfemar era um pecado mortal na Idade Média, de modo que os camponeses evitavam cometê-lo. Já os senhores feudais o faziam sem o menor escrúpulo, até que um jesuíta os proibiu de usar o nome de Deus em vão. Eles, então, substituíram “Deus” por “Azul” (em francês: Dieu por Bleu, ou seja, palavras com a mesma terminação). Para distinguir um nobre de um plebeu – uma vez que blasfemar era privilégio da nobreza –, os servos passaram a dizer: “Esse é um sangue-azul (sang bleu).”

Com efeito, o sangue azul dos nobres passou a expressar a distinção entre as classes alta e baixa em toda a Europa. A primeira valorizava sua pele branca, com os capilares azuis visíveis, em contraste com o tom acobreado de pele dos trabalhadores. Essa diferença está presente no filme, conforme vamos descobrir, ainda que ambos os protagonistas sejam ricos e privilegiados. Se hoje em dia parece estranho elogiar as veias turquesas de um pretendente, elas ganhavam destaque nos retratos das mulheres nobres da modernidade. De fato, esse era um traço desejável na Europa medieval, um sinal de nobreza e riqueza.

Os obstáculos de um amor improvável

Mas a ideia de linhagem, que separa nobres de plebeus, continua bem viva nas mentalidades. O conflito central de Vermelho, Branco e Sangue Azul gira em torno dessa barreira, que em princípio impede Alex e Henry de assumirem seu relacionamento “fora do armário”. O primeiro é um rapaz moreno e corajoso, filho de um casal da classe trabalhadora cuja trajetória na política levou sua mãe à Casa Branca. Seu interesse romântico é o adorado nobre britânico. Loiro, doce e de pele marmórea, Henry tem os trejeitos da Princesa Diana, assim como os de seu filho, o Príncipe William.

Alex sabe que Henry nasceu em berço de ouro, com todos os limites que sua posição, enquanto membro da realeza, lhe impõe. O principal deles é, sem dúvida, o peso da tradição. Aspirante a político progressista, o americano representa ao American Way of Life, a autorrealização e a eterna possibilidade de se reinventar. O príncipe, em contraste, vive preso às empoeiradas tradições britânicas e aos encargos monásticos forjados séculos antes de seu nascimento. Nesse sentido, a despeito da história de amor entre dois rapazes, o drama de Henry evoca os dilemas da Rainha Elizabeth II na série The Crown.

Em resumo, Vermelho, Branco e Sangue Azul fala sobre amor, aceitação e autodescoberta no contexto de um relacionamento homoafetivo quase impossível. Em alguns momentos, no entanto, podemos até mesmo esquecer da posição dos personagens, bem como das implicações geopolíticas de sua relação, tamanha a naturalidade com que se desenvolve. Com humor, esse filme LGBTQ+ critica as divergências partidárias que fogem dos reais problemas da sociedade. Também reflete sobre o papel da monarquia nos tempos atuais e a persistência de tradições que já não cabem à nossa época.

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Referências

Dicionário de símbolos (2020), de Jean Chevalier e Alain Gheerbrandt.

“Why were people of noble birth said to be ‘blue blooded’?” (History Extra / BBC History Revealed Magazine, 01/12/2014). Em: https://www.historyextra.com/period/georgian/why-people-noble-called-blue-blooded/.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Por que os nobres têm sangue azul?, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/por-que-os-nobres-tem-sangue-azul/. Acesso em: 08/10/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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