O universo cultural do funk e a expressão Ubuntu

Vamos falar sobre o universo do funk e suas várias possibilidades a fim de valorizar as manifestações culturais brasileiras. Em especial, da população jovem das periferias urbanas. A cultura de um povo, ou de uma parte dele, é fundamental para entender como esse povo vive, se organiza, preserva suas tradições e manifesta seus gostos sobre aquilo que vê como essencial na sua vida.

Portanto, quando falamos em manifestações culturais, estamos falando em diferentes formas e jeitos de expressão do modo de vida e do modo de ser das pessoas e da sociedade em que essas pessoas vivem.

A cultura como forma de expressão

Todos sabemos que não há uma cultura superior e uma cultura inferior. Sabemos que todos os povos, todos os grupos humanos e todas as sociedades, em todos os tempos e lugares, criam suas próprias expressões culturais. Também sabemos que a cultura tem uma característica essencial para a sua preservação: ela não é imutável. Isso quer dizer que ela varia, mas, sobretudo, que ela se mistura.

Isso mesmo, o homem vive numa grande aldeia global. Com as tecnologias da comunicação, tudo o que ocorre no mundo está na palma da mão em questão de segundos. Sabemos de tudo, ou quase tudo, com um simples clique no celular. Isso faz com que diferentes culturas, antigas e contemporâneas, tradicionais e modernas, de longe e de perto, possam conversar e se misturar com mais rapidez.

Mas você deve estar se perguntando: e o que isso tem a ver com o título desse texto? Tudo!

O batidão do funk

Através da batida do funk, que se produz com o intuito de expressar o gosto musical, gestual, artístico e cultural de uma parcela da população negra norte-americana, grupos de jovens do mundo inteiro conectaram-se e deram um sentido próprio ao que vamos chamar de universo cultural do funk.

No Brasil, principalmente a partir dos morros cariocas, o funk ganhou traços próprios e se tornou, hoje, o grande fenômeno de produção cultural da juventude, sobretudo dos jovens negros e pobres das periferias.

Para produzir ritmos, estilos, estéticas, roupas e conceitos que cercam tal universo, percorremos, ao longo de meio século de experimentações, trocas, cumplicidades e muita criatividade, um caminho tortuoso. Caminho marcado pelo preconceito, pela violência, pelo descrédito, pela marginalização e pela desvalorização daquilo que se produzia, que se tornou hoje o que é: a grande indústria do funk nacional.

Juventudes e galeras

Tudo isso só foi possível porque o funk é uma manifestação cultural que dialoga com todas as culturas ao seu redor. O resultado é uma produção significativa do modo de ser e querer-ser no mundo. Ou seja, através do funk, os jovens expressam seus medos, angústias, experiências, relacionamentos, desafios e perspectivas daquilo que vivem, seja como indivíduos, seja como grupo ou, mais significativamente, como “galera”.

O funk possui uma densa produção simbólica e nela há um conjunto de processos organizadores do seu universo, dentre os quais, destaco: a forma de organização das galeras, dos territórios das galeras, bem como a disposição dos membros das galeras.

Ubuntu e cultura funk

O que marca as galeras é o forte relacionamento social e afetivo. Essa característica nos lembra a concepção ético-filosófica do termo Ubuntu, isto é, a forma como o povo africano constrói seu modo de vida e a expressa. De acordo com Kashind (2003), “Ubuntu significa, por um lado, a humanidade que é vivenciada e realizada com os outros, e, por outro, a humanidade como valor”.

No site Mundo Ubuntu, encontramos a seguinte definição para o termo:

“Ubuntu é uma palavra que apresenta significados humanísticos como a solidariedade, a cooperação, o respeito, o acolhimento, a generosidade, entre muitas outras ações que realizamos em sintonia com a nossa alma (com o nosso ser interno), buscando o nosso bem-estar e o de todos à nossa volta” (Mundo Ubuntu, 2012).

O ato de vivenciar com o outro e com ele construir o sentido da vida faz parte da representação africana desse termo, bem como na expressão que os funkeiros apropriaram, de modo particular: “é nóis”. Ambas as expressões buscam, no outro, o significado central para a sua existência.

Expressões do universo cultural do funk

No universo das galeras de funk, a expressão “é nóis” representa um conjunto determinante para a identidade e o modo de ser funkeiro. É tanto a ideia de “fechamento” com outros colegas, quanto a ideia de confiança no outro. Em suma, “é nóis” é estar juntos num espaço de amizade e confiança.

Nesse espaço, que se constrói na galera funk, outra expressão que reforça o sentimento de vivência coletiva é o fechamento. Afinal, estar “fechado” com o outro fortalece as relações de cumplicidade e culiagem (isto é, aliança), elementos centrais na formação de vínculos sociais e afetivos entre os funkeiros.

Nesse universo de representação cultural, em que as relações interpessoais são determinantes, podemos encontrar, portanto, outra característica central do funk: sua capacidade de brincar com os elementos da tradição oral ou mítica da população.

Cuidado com a Cuca que a Cuca te pega

Só para exemplificar, vamos abordar a ideia mítica da Cuca. Portadora de elementos das culturas europeias, africanas e ameríndias, a Cuca está eternizada no imaginário popular como bruxa ou feiticeira, confundindo-se ora com uma mulher velha, ora com um jacaré. Seu papel central é provocar, através do medo, a obediência, o temor, sobretudo das crianças e dos malcriados.

Trazida ao universo cultural do funk, a Cuca ganhou status de equipe de som e uma versão funk da sua canção popular de ninar criança.

“Nana neném que a Cuca vem pegar,

papai foi pra roça, mamãe foi trabalhar”.

Levada aos bailes das antigas em todo o país, a versão funk da cuca malvada também impõe o temor e a obediência. Nesse caso, portanto, quem recebe a mensagem é o “alemão”, aquele funkeiro das galeras rivais com quem não se culia ou fecha. É para ele, o alemão, que a cuca manda seu alerta:

Cuidado com a cuca que a cuca te pega.

Te pega daqui, te pega de lá.

A cuca é malvada e se fica irritada,

a cuca é zangada, cuidado com ela.

Conforme vimos, o universo cultural do funk tem profunda capacidade de diálogo com a sociedade e suas manifestações culturais. Resta-nos, enquanto comunidade, acolher as diferentes expressões da juventude e promovê-las como elemento essencial do seu modo de ser no mundo.

Atualização de novembro de 2022

Em comemoração do Mês da Consciência Negra, o Google Arts & Culture, em parceria com o Instituto Kondzilla, publicou um rico material sobre o funk. Para saber mais, leia Funk: Relíquia da Periferia.

Referências

Geografia dos Mitos Brasileiros (2012), de Luís da Câmara Cascudo.

Lenda da Cuca, por Daniela Diana. Em: https://www.todamateria.com.br/lenda-da-cuca/.

“Funk da antiga: cuidado com a cuca”. Em: https://www.youtube.com/watch?v=BQrDUg_TT9I.

“Ubuntu como ética africana, humanista e inclusiva” (2003), de Jean-Bosco Kakozi Kashindi. Em: http://www.ihu.unisinos.br/cadernos-ihu-ideias

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José Augusto da Silva

José Augusto da Silva

Antropólogo, Doutor em Educação (Universidade Católica de Petrópolis) e professor de Sociologia da rede estadual de Minas Gerais. É pesquisador na área de educação, juventude e cultura, com ênfase no estudo do universo funk e da formação de vínculos identitários entre a juventude.
José Augusto da Silva

José Augusto da Silva

Antropólogo, Doutor em Educação (Universidade Católica de Petrópolis) e professor de Sociologia da rede estadual de Minas Gerais. É pesquisador na área de educação, juventude e cultura, com ênfase no estudo do universo funk e da formação de vínculos identitários entre a juventude.

4 respostas

  1. Li três vezes. Fantástico!!! Não via o funk dessa maneira e jamais conseguiria fazer essas relações sem antes ler esse maravilhoso texto. Parabéns ao autor.

  2. Já tive o prazer de trabalhar com prof. José Augusto. Fica a minha referência.

  3. Parabéns José Augusto,você tem um olhar muito especial sobre a sociedade,o ser humano e suas tradições.

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