Os contos de Anansi: da fábula africana ao Homem-Aranha

O Homem-Aranha é um dos super-heróis mais queridos da Marvel Comics. Dos quadrinhos aos games, das figuras de ação ao cinema, ele também é, sem dúvida, um dos mais populares. Todos conhecem a história do menino que foi picado pela aranha radioativa, ganhou grandes poderes e, por consequência, criou grandes responsabilidades. Hoje, quem veste o traje do herói na maioria das vezes é Miles Morales, um rapaz negro americano. O que muitos não sabem, no entanto, é que existiu outro “homem-aranha” muito antes do amigão da vizinhança. Ele também é esperto, destemido e um pouco trapaceiro, sempre enganando seus inimigos para vencê-los e tirar vantagem. Mas ele não vem dos quadrinhos, e sim da mitologia africana. Vamos conhecer os contos do famoso Anansi, pois ele é….

O primeiro “homem-aranha”

As histórias de aranhas são comuns na África Ocidental, mas os contos de Anansi vêm de uma antiga fábula de Gana. Nesses contos, que eram passados de geração em geração, Anansi aparece como um ser humano com corpo de aranha, ou apenas como uma aranha. Ele foi, portanto, o primeiro homem-aranha. Além disso, por ser inteligente e muito esperto, também tinha fama de trapaceiro.

Durante o comércio de negros no Atlântico, os contos de Anansi viajaram de Gana ao Caribe e depois às Américas. Anansi é bastante popular em todos esses lugares. Afinal, é um personagem forte, admirado pelos escravizados por sua habilidade de enganar os senhores a fim de se libertar.

Hoje, Anansi é um dos personagens folclóricos mais conhecidos do mundo. Seus contos deram origem não apenas a filmes, como também a peças de teatro, desenhos e livros. Recentemente, a lenda ganhou nova versão em Os filhos de Anansi (2012), do escritor Neil Gaiman. Na TV, Anansi virou um ícone da cultura pop em American Gods (2017), adaptação de outro livro de Gaiman. O Sr. Nancy (nome que vem de Anansi) de fato é um dos melhores personagens da série. Nos quadrinhos da Marvel, “Anansi o Deus Aranha” estreou em uma edição especial de 2007. Em 2015, tornou-se uma versão alternativa do Homem-Aranha no Aranhaverso.[1]

As histórias de aranha

Tudo começou há muito tempo, quando não existiam histórias no mundo. As pessoas viviam sem passado, sem ter o que contar. Apenas Nyame, o senhor do céu,[2] tinha tal sabedoria. Então, Kwaku Ananse, também conhecido como Anansi, a Aranha, decidiu pegar as histórias de Nyame para encantar seu povo, que vivia triste.

O nome Anansi vem de Ananse, que é “aranha ”no idioma Twi. Por isso, seus contos se chamam Anansesem (histórias de aranha). Esperto e habilidoso, Anansi teceu uma longa teia de prata, com fios finos e fortes, que o levava até o infinito.

O esperto Anansi

Anansi é um trapaceiro, pois usa a esperteza para se dar bem em qualquer situação, muitas vezes pregando peças e enganando os outros. Ele é implacável a ponto de vencer animais maiores ou mais fortes do que ele. Em um conto famoso, por exemplo, Anansi consegue ganhar todas as histórias de Nyame. Leia uma adaptação do conto, feita pela TV Cultura:

“Esta é a história de um homem muito brincalhão. Um dia por causa de uma de suas brincadeiras, ele levou um chute e se desfez em mil pequenas aranhas. Este homem-aranha, chamado Anansi, era muito esperto e enganava até os deuses.

Uma vez, ele resolveu comprar todas as histórias do deus do céu que se chamava Nyame. Para que o negócio fosse feito, Nyame propôs que Anansi desse conta de uma difícil tarefa:

Anansi teria de capturar uma cobra super venenosa, um leopardo, um enxame de abelhas e Mmoatia, um espírito. Para cumprir essa tarefa Anansi, habilmente, prendeu a cobra num galho, as abelhas numa cuia, atraiu o leopardo para um poço e o espírito foi preso a uma boneca que estava pincelada com cola vegetal.

Com toda essa esperteza, as criaturas foram capturadas e entregues ao deus supremo Nyame. Ele, admirado com a façanha, deu a Anansi todas as suas histórias e disse que, dali em diante, elas deveriam ser chamadas de Histórias da Aranha”.

Foi assim que Anansi se tornou o “Senhor de Todas as Histórias”. Mas, em alguns contos, Anansi também se dá mal. Isso porque os contos de Anansi são fábulas, de modo que há uma moral para essas histórias.

A arte de contar histórias

A mitologia e a arte de contar histórias fazem parte das culturas africanas, pois são meios de transmitir às gerações futuras a sabedoria universal, as normas e os costumes. Os contos de Anansi, portanto, não seriam uma exceção. Deles tiramos lições valiosas, além de mensagens que revelam os traços e as atitudes desse personagem.

Mas o que Anansi nos ensina?

Certamente, o valor de planejar e calcular nossas decisões, para estarmos sempre um passo à frente. Em outras palavras, Anansi mostra como é importante ter consciência de nossas condições o tempo todo.

A Natureza é altamente reverenciada na África e em suas histórias, pois os africanos creem que o mundo natural é manifestação da Força Suprema. Cada aspecto do mundo tem um propósito, bem como peculiaridades e lições para nos ensinar.

Não é surpresa que, nesses contos, Anansi seja um intermediário entre Nyame e os seres humanos — ou seja, quem faz a ligação entre ambos. Afinal, a figura do trapaceiro é muito comum nas mitologias africanas, visto que ele cruza os dois planos de existência (os reinos físico e espiritual). O Exu dos yorubá, por exemplo, também representa a Força Natural.

Da fábula aos quadrinhos

Por meio dos contos de Anansi, podemos estudar oralidade, cultura africana e literatura. Surpreendentemente, essas histórias são renovadas de diferentes maneiras, como se Anansi continuasse tecendo a sua teia.

A aranha e sua teia, aliás, servem de inspiração para as artes ao longo do tempo. Hoje, sobrevivem principalmente graças aos quadrinhos, ao cinema e aos games. O Homem-Aranha traz consigo o mesmo princípio mágico da arte de contar histórias dos povos antigos. Conforme tece a sua teia, vencendo vilões muito maiores que ele, o herói da Marvel traz o mito para a nossa época e para a cidade-símbolo da modernidade, Nova York.

De modo a honrar as raízes do personagem, quem veste o traje de aranha hoje, em muitas histórias, é Miles Morales. Rapaz afrodescendente, filho de mãe imigrante, Miles é igualmente querido pelos fãs.

Referências

“Anansi the Spider: Trickster or Teacher?” (2020), por Verona Spence-Adofo (@AncestralVoices). Em: https://tinyurl.com/y5nuskdy

“Teias narrativas: Aracne, Anansi e o Homem-Aranha” (2014), de José Carlos Sebe Bom Meihy. https://doi.org/10.11606/issn.2238-2593.organicom.2014.139220

“The Origin of Anansi the Spider” (2016), de Tameka N. Ellington. Em: https://tinyurl.com/y293d4vq

“Uma aranha muito esperta: adaptação de lenda africana” (Ilha Rá-Tim-Bum, TV Cultura).

Leia também

Os filhos de Anansi (2012), de Neil Gaiman.

Homem-Aranha: Aranhaverso (Panini Brasil, 2015).

Spider-Man Fairy Tales (Marvel, 2007) #2

Saiba mais sobre a mitologia africana e afro-americana!

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Os contos de Anansi: da fábula africana ao Homem-Aranha, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/os-contos-de-anansi-da-fabula-africana-ao-homem-aranha/. Acesso em: 26/11/2024.


[1] Homem-Aranha: Aranhaverso (Panini Brasil, 2015) #3 (abril de 2016), de Kathryn Immonen e David LaFuente.

[2] Nyame é a Força Suprema (“Deus”) para os Akan, grupo étnico africano.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

2 respostas

  1. Anansi existe na DC, está ligado a origem da Vixen e aparece no desenho do Super-Choque, que até faz uma piada com o Homem-Aranha e o visual dele lembra o Zorro, na Marvel tem algumas aparições, o Coates novamente mexeu em Wakanda e criou uma raça extra-dimensional de aranhas e chamou de Anansi, é uma das raças que formavam os Originadores, expulsos pelos deuses wakandanos
    https://marvel.fandom.com/wiki/Anansi_(Race)

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