Os vikings existiram? Não como conhecemos

Na edição de junho de 2022 da History Today, Alex Woolf traz uma nova visão sobre os povos nórdicos. Mais do que isso, em seu artigo “Goodbye to the Vikings” (“O adeus aos vikings”), o professor de história da University of St Andrews trata de um estereótipo racial. Mostra como a falsa ideia de que os “vikings” existiram jogou toda uma etnia dentro do mesmo saco, como se ela não passasse de um bando de “bárbaros”. Decerto, o termo agrupou nações muito distintas no tempo. Nesse sentido, o artigo de Woolf é uma revisão da imagem de senso comum dos povos nórdicos, tão presentes na cultura pop. Ainda que, na maioria das vezes, eles apareçam quase como caricaturas.

As origens do termo viking

De acordo com Woolf, a ideia que nós temos de “viking” não existia na idade média, já que o termo só entrou em uso no século XIX. As palavras wicing e víkingr de fato existiram no inglês e no islandês arcaicos, respectivamente, mas tinham usos distintos. Com efeito, pesquisadores chegaram ao consenso de que “viking” era uma função social, não uma etnia.

Já sabemos por Perry Anderson que a própria ideia de “idade média” é falha, pois os grupos sociais da Europa feudal não eram homogêneos. Por sua vez, Woolf esclarece que víkingr era o termo irlandês para “pirata”, independentemente da época ou de onde viesse, ou da língua que falasse. Poderia ser estoniano ou sarraceno, por exemplo. A questão é que o termo quase nunca teve relação com os homens que os livros didáticos, a cultura pop e o senso comum rotulam de “vikings”.

Muitos eram, de fato, guerreiros em expedições militares com objetivos políticos claros. Mas chamá-los de “vikings” seria o mesmo que chamar oficiais da marinha britânica, francesa ou holandesa do século XVIII de “piratas” só porque usavam chapéus parecidos e navegavam em navios semelhantes ao do Barba Negra. Por falar em chapéu, aliás, os povos nórdicos nunca usaram elmos com chifres, visto que eram comuns na Era do Bronze. No tempo dos vikings, portanto, eles não existiram.

Um novo sentido para o termo

O termo “viking” entrou para o inglês moderno no início do século XIX. Isso ocorreu no momento em que surgiram as primeiras traduções da literatura islandesa medieval para as grandes línguas europeias. A princípio, ele preservou seu sentido; até que, nos anos de 1860, passou a descrever os primeiros guerreiros da Escandinávia feudal (região do norte da Europa).

O sentido moderno, isto é, a “etnicização” do termo – que deu origem a expressões como “cidades vikings”, “mulheres vikings”, “território viking” etc. – é muito mais recente. “Isso é insidioso”, de acordo com Woolf, “pois ao vincular a bravura e a selvageria militar a todo um grupo étnico, incentiva-se sua apropriação por supremacistas raciais”.

Problemas com a definição

Conforme Woolf, a questão não é apenas semântica, já que a falsa ideia de que os “vikings” existiram distorce seriamente o que sabemos da história europeia. Isso porque tendemos a taxar quase todas as atividades escandinavas, da década de 790 a meados do século XI, com o rótulo “viking”. Assim, criou-se uma “Era Viking” e uma identidade ou cultura viking imaginárias, pois não há provas de que existiram.

Em primeiro lugar, os povos escandinavos eram extremamente diversos em termos de geografia, estrutura social e história. A Dinamarca é um território plano e fértil; assim sendo, viu surgir um padrão de assentamentos tão complexos quanto quaisquer outros na Inglaterra.

No século IX, quando chegaram à ilha britânica, soldados e colonos dinamarqueses viram paisagens muito semelhantes às que já conheciam, bem como povos que viviam em estruturas econômicas e sociais igualmente similares. Em contraste com o senso comum, as pessoas que lá viviam não eram bárbaros selvagens penetrando reinos mais civilizados.

Naquele período, as terras dinamarquesas eram mais propícias à sobrevivência dos povos nórdicos. Acredita-se que eles vivessem, em grande parte, na Dinamarca. A Noruega, cujos fiordes ocidentais viraram o cenário estereotipado onde vivem os “vikings”, era um remanso pouco povoado. Seu valor era sua função de rota para as regiões do Ártico e para bens de luxo (pele e marfim de morsa).

O medo dos pagãos

As fontes históricas do período, que chegaram até nós, vieram de fora da Escandinávia, mas Woolf mostra alguns padrões consistentes. Por exemplo, as crônicas irlandesas, inglesas e francas, no fim dos séculos VIII e IX, referiam-se aos invasores nórdicos como “pagãos”. O fato de que ainda cultuavam suas antigas tradições pareceu afetar suas vítimas mais do que qualquer identidade étnica.

Sobre a incursão de 793 em Lindisfarne (suposto marco de início da “Era Viking”), a Crônica Anglo-Saxã disse assim: “A devastação dos homens pagãos destruiu miseravelmente a Igreja de Deus em Lindisfarne com pilhagem e massacre”. No ano seguinte, os Anais de Ulster deram conta da “devastação de todas as ilhas da Grã-Bretanha pelos gentios”.

Séculos antes, viu-se a expansão implacável da cristandade, não só no Oriente como também no Ocidente. Acreditava-se que era tudo um plano de Deus. No entanto, a ideia de que a cristianização poderia andar para trás apavorou escritores do clero. Conforme Alcuin de York: “Nunca antes, na Grã-Bretanha, surgiu tal terror como aquele que agora padecemos de um povo pagão, nem sequer se imaginou que tal incursão por mar se pudesse fazer”.

Porque os vikings não existiram

Nas décadas de 990 a 1070, época do suposto fim dos vikings ou da “Era Viking”, a cristandade latina anexou a Dinamarca. Portanto, chamar de “viking” um rei como Cnut (que uniu os reinos da Inglaterra, Dinamarca e Noruega no início do século XI) não faz sentido. Ele esteve na coroação de Conrado II em Roma, em 1027, e fundou igrejas em seus reinos inglês e dinamarquês.

Da mesma forma, Harald Hardrada (“o último dos vikings”) era irmão de um santo e passou boa parte da vida em Bizâncio (centro do Império Romano do Oriente). Por conseguinte, nota-se que os reis escandinavos do século XI, como Cnut e Harald, tinham muito mais em comum com seus sucessores, dos séculos XII e XIII, do que com invasores pagãos dos séculos VIII e IX. Além disso, a invasão da Inglaterra em 1066 foi uma ação política com apoio de facções dentro do próprio reino.

A diáspora escandinava

Na Inglaterra e na Irlanda do século XII, incursões marítimas de pequenos grupos seguiram de tempos em tempos, ainda que tais grupos fossem alheios a qualquer ação política ou militar mais ampla. De fato, atividades desse tipo – que definem o clássico comportamento “viking” – talvez sejam mais características daquele período. Isto é, surgiram posteriormente ao que chamamos, por convenção, de “Era Viking”. Tais invasores vieram da diáspora escandinava nas ilhas escocesas.

Depois da conquista normanda e ao longo de um século, antigos povos celtas atormentaram a costa irlandesa e a Grã-Bretanha. Só a invasão inglesa pôs um ponto final nas suas ações. As Ilhas Ocidentais limitavam-se, sobretudo, à agricultura de subsistência, de tal forma que a predação de terras ricas era a chave para que os chefes locais mantivessem seus postos.

É hora de dizer tchau… aos vikings!

O vikings realmente existiram? Não como conhecemos. De maneira geral, o que vemos na cultura pop é um estereótipo dos povos nórdicos, cujas culturas e tradições o cristianismo eclipsou. À exceção, talvez, de obras como a série Vikings (2013-2020) e o game Assassin’s Creed Valhalla (2020), que trazem elementos da mitologia nórdica, mas partem de pesquisas históricas e visões mais críticas.

Em conclusão, Woolf afirma que essa ideia confunde e ofusca a imagem dos piratas dos séculos VIII a XII. Isso porque reis irlandeses do século X, e reis cristãos como Cnut, viveram em sociedades muito distintas, com sistemas de crenças e objetivos políticos e econômicos igualmente distintos.

Assim sendo, devemos tratar cada um desses contextos em seus próprios termos. Isto é, evitando olhar para os povos nórdicos a partir de uma ideia que surgiu posteriormente, no século XIX, e que não passa de um estereótipo racista. “Já é hora de os historiadores abandonarem a ideia dos vikings, pois se trata de um modo de pensar ultrapassado e perigoso”, diz Woolf. “Os vikings nunca existiram; é hora de pôr essa fantasia doentia para dormir”.

Referências

Goodbye to the Vikings (History Today, 06/06/2022), por Alex Woolf.

Passagens da antiguidade ao feudalismo (1991), de Perry Anderson.

The Horned Helmets Falsely Attributed to Vikings Are Actually Nearly 3,000 Years Old” (Smithsonian Magazine, 10/01/2022), por Livia Gershon.

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Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Os vikings existiram? Não como conhecemos, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/os-vikings-nao-existiram-como-conhecemos/. Acesso em: 19/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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