Quem é Wisakedjak, o deus indígena de American Gods?

A guerra entre os velhos e novos deuses vai esquentar na terceira temporada de American Gods — adaptação para a TV do livro de mesmo nome do escritor Neil Gaiman. No episódio 1 (A Winter’s Tale), que estreou em janeiro de 2021, um novo “deus” entrou para o elenco. “Whiskey Jack” é uma corruptela de Wisakedjak, o verdadeiro nome desse personagem — um velho nativo americano que vive em um trailer. Vamos descobrir quem é ele, que saiu da mitologia indígena, e qual a sua função na trama.

O trapaceiro na mitologia indígena

Em 1956, o antropólogo Paul Radin descreveu e analisou pela primeira vez o mito de um trapaceiro, a quem os winnebagos (povo originário da região do Wisconsin, nos EUA) chamaram de Wakdjukaga. Este nome significa, literalmente, “aquele que prega peças” — aquele que trapaceia, mas que também é passado para trás. A partir de Radin e outras fontes, Laurent Jérôme fez um estudo sobre o trapaceiro nos mitos indígenas americanos (não apenas na América do Norte, mas também do Sul).

Há tempos, os mitos e práticas rituais em torno do trapaceiro chamam a atenção de estudiosos. Alguns, inclusive, documentaram o lugar e a função do riso e do humor entre os povos indígenas. Afinal, esse personagem — presente em todas as culturas — tem um papel lúdico, embora seja também ambíguo na memória, na história e nas visões de mundo das sociedades. Isso porque ele é, ao mesmo tempo, criador e destruidor. Também é um ser de grande sabedoria, mas que a usa para aprontar e desafiar as regras.

O significado do nome Wisakedjak

Já os Atikamekw, que vivem na região do Quebec, no Canadá, evocam o trapaceiro Wisakedjak, ora humano, ora animal, muito associado ao carcaju (Kwekahakew). Isso porque, entre os indígenas da América do Norte, o trapaceiro eventualmente toma a forma de um animal (lebre, coiote, lobo, carcaju, entre outros). Quanto às suas qualidades, destacam-se o poder de fazer rir e de criar elementos do ambiente (plantas, remédios, pássaros, peixes), bem como de transformar, destruir ou imitar.

Carcaju (ou glutão).

De acordo com Jean-André Cuoq, o nome Wisakedjak significa “aquele que tem uma alma grande demais”. Padre católico e autor de um dicionário da língua algonquina, Cuoq faz uma ponte com o Manitou, o criador da terra e de todas as coisas na crença dos algonquinos. Também explica o lugar do trapaceiro nessa tradição e o relaciona ao macaco, pois ele seria um imitador nato. Assim, revela traços próprios do trapaceiro: a fala, o senso de humor e o dom da imitação.

Mas, afinal, quem é Wisakedjak

Conforme explica James Finley, Wisakedjak (ou Wi-sak-a-chak) vem da língua algonquina e se traduz como “bajulador” ou “hipócrita”. Seu nome tem várias grafias, pois a língua Cree se estende por grande área geográfica (norte dos EUA e Canadá) e possui diferentes dialetos.

As características desse personagem também variam de acordo com a região. De modo geral, ele é tanto um herói na cultura algonquina quanto um trapaceiro. Em alguns mitos, ele é obra do Grande Espírito com o propósito de ensinar a humanidade; é amigo e tutor. No mais famoso, contudo, ele desobedece seu criador, Kitche Manitou (ou Ki-sei-men’-to) e desencadeia um grande dilúvio —  como na mitologia bíblica. Mas, de acordo com Finley, essa história é mais longa, envolvente e rica em detalhes do que a da Arca de Noé, e talvez seja mesmo anterior às Escrituras.

Da criação à destruição

O explorador David Thompson registrou uma versão que precede a chegada dos missionários à América, e que tomou várias formas ao longo do tempo. O personagens desse mito são Wisakedjak e Kitche Manitou, o Grande Espírito e criador do mundo. Em resumo, feito por Finley:

Após Kitche Manitou criar todos os animais e as primeiras pessoas, ele disse a Wisakedjak: “Cuide bem de meu povo e ensine-o a viver. Mostre a eles todas as raízes más, todas as raízes que irão feri-los e matá-los. Não deixe as pessoas ou os animais brigarem”.

Mas Wisakedjak o desobedeceu e deixou as criaturas fazerem o que bem quisessem, e elas logo começaram a brigar. Kitche Manitou então avisou que, se as brigas continuassem, ele faria um dilúvio limpar a terra. Ainda assim, Wisakedjak não deixou de trapacear os animais e as pessoas, pondo-os uns com os outros. A terra ficou vermelha de sangue.

Com raiva, Kitche Manitou cumpriu sua promessa. Então, choveu e choveu, os rios transbordaram e apenas três habitantes sobreviveram ao dilúvio: Wisakedjak, um castor e um rato almiscarado. Por fim, depois de muita bajulação, o pequeno rato salvou o dia e Kitche Manitou começou tudo de novo, criando as pessoas, os animais e as árvores. Ele também tirou de Wisakedjak todos os seus poderes, exceto os dons da enganação e da bajulação. Depois, ele continuaria a pregar peças nas pessoas e nos animais, em histórias sem fim que ultrapassam gerações.

Wisakedjak em American Gods

Shadow Moon e o Sr. Wednesday visitam Wisakedjak, a quem o último chama de “Whiskey Jack”. Então, a lendária divindade indígena diz a Shadow que ele tem um papel a cumprir em seu destino. Em seguida, mostra no fogo três mulheres que poderão guiá-lo.

No momento em que o Sr. Wednesday chega perto das chamas, Wisakedjak o repreende, lembrando que foram os seguidores dele (os homens brancos) que exterminaram seu povo (os indígenas) e colonizaram suas terras. (O Sr. Wednesday na verdade é Odin, o maior dos deuses nórdicos). A cena do massacre abre o episódio 2 da terceira temporada.

A princípio, Wisakedjak sabe da busca de Shadow pela sua própria identidade. Mas e quanto à profecia? Dado o que já vimos sobre o personagem, estaria ele pregando uma peça? Ou fazendo o papel de tutor, ajudando Shadow a tomar um rumo? Afinal, ele pode ser o trapaceiro tanto quanto o agente da transformação, papéis que lhe cabem nos mitos. Fique ligado em American Gods para saber mais!

Referências

“Beware the Whiskey Jack” (Blue Jay, número 69, 2011), por James Finley. Em: https://doi.org/10.29173/bluejay6082.

“Le trickster dans la bande dessinée : l’art de figurer la ruse dans les cosmologies de l’Amazonie brésilienne et des Premières Nations du Québec” (Revue internationale d’anthropologie culturelle & sociale, 2020), por Laurent Jérôme. Em: link.

Leia também

Indian Legends of Canada (1960), de Ella E. Clark.

Lexique de la langue algonquine (1986), de Jean-André Cuoq.

Native American Legends: Wisakedjak (Wesakechak), em: http://www.native-languages.org/wisakejak.htm.

Os contos de Anansi: da fábula africana ao Homem-Aranha” (sobre o trapaceiro os mitos africanos), em Projeto Ítaca.

Quem é o Sr. Quarta-Feira em American Gods?“, em Projeto Ítaca.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Quem é Wisakedjak, o deus indígena de American Gods?, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/quem-e-wisakedjak-o-deus-indigena-de-american-gods/. Acesso em: 25/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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