Uzumaki: a espiral do horror de Junji Ito

Enquanto representação do medo, Uzumaki: a espiral do horror é a obra-prima chocante e perturbadora do gênio criativo de Junji Ito. Em três volumes, publicados entre 1998 e 1999, essa fantasia sombria conta a história de pessoas que, de repente, veem-se obcecadas pela forma das espirais. A obsessão ganha contornos de loucura e resulta em tragédia, numa trama que mergulha nas raízes do medo. Vamos descobrir, com esse mangá, o simbolismo da espiral e sua transformação em fonte de horror.

A obra-prima de Junji Ito

Na história seriada de Uzumaki, uma estranha maldição recai sobre a cidade costeira de Kurozu-cho, onde fenômenos sobrenaturais começam a ocorrer. (O próprio nome do lugar diz muito sobre o que está por vir, pois significa, em japonês, “cidade do vórtice negro”). Os protagonistas são o adolescente Shuichi Saito e sua namorada Kirie Goshima, que testemunham o frenesi com a forma das espirais.

Conforme a maldição se espalha, e o horror afeta cada vez mais gente, os pais de Suichi enlouquecem e morrem devido aos efeitos físicos e psicológicos da obsessão. Traumatizado, o rapaz torna-se cada vez mais recluso e antissocial, ao mesmo tempo que procura desvendar o estranho fenômeno. Eventualmente, Kirie também é vítima das espirais do horror; seus cabelos ganham vida própria, com mechas onduladas e serpentinas que a fazem lembrar a Medusa da mitologia grega. Ela é capaz de hipnotizar as pessoas, espalhando ainda mais rápido os efeitos perturbadores da maldição.

O estranho padrão das espirais

A espiral, cuja forma natural é frequente nos reinos vegetal e animal, evoca a evolução de uma força e de um estado; e Uzumaki nasceu de uma obsessão do artista com essa forma. Logo que notou um “estranho padrão” nas espirais, Junji Ito decidiu investigá-las e pôr suas ideias no papel. Como um dos personagens da sua história, passou a observar o redemoinho no ralo da banheira, no casco dos caramujos, entre outras coisas. Por fim, concluiu que a forma é uma representação do infinito.

Ito dedicou-se, então, a subverter a imagem mais positiva das espirais, que tradicionalmente representam ternura nas artes e na cultura popular asiática. O termo “uzumaki” significa “espiral” em japonês, mas em seu trabalho também funciona como metáfora para a própria narrativa – que, a princípio, desenvolve-se de forma aleatória e, sobretudo, cíclica. Assim, o artista consegue transformar a espiral, que é uma forma geométrica simples, em uma sinistra representação do medo e da loucura.

A subversão de um símbolo

Porém, os eventos de Uzumaki não resultam de mera aleatoriedade, mas sim de uma maldição cujas raízes brotam da obsessão humana. Esse tema é recorrente na mitologia e nas histórias de horror japonesas, tanto quanto a ação das forças sobrenaturais no mundo. Destacam-se O Fantasma de Yotsuya (Tôkaidô Yotsuya kaidan, 1959), filme de Nobuo Nakagawa, e o mangá Death Note (2003-2006).

De forma habilidosa e perturbadora, Ito incorporou na sua obra-prima um símbolo importante na mitologia asiática. Na China, por exemplo, a espiral tem relação com a serpente, associada à imortalidade, à sabedoria e ao poder do imperador; mas também podemos encontrá-la em todas as culturas, como símbolo de extensão, desenvolvimento e continuidade cíclica. Afinal, essa forma representa o movimento circular que sai do ponto original, então prolonga esse movimento ao infinito.

Em contraste, a espiral torna-se uma versão corrompida dessa sabedoria, que resulta em tragédia nas mãos do artista. Passa a representar, portanto, a obsessão, a loucura a degeneração que afetam os personagens ao confrontá-los com um horror cósmico indescritível. Não por acaso, uma das grandes inspirações para Ito foi o “expressionismo” e a “atmosfera” de H. P. Lovecraft.

O horror artístico na obra de Junji Ito

De acordo com Noel Carroll, o “horror artístico” é um gênero que atravessa diferentes mídias e formas de expressão. Distingue-se do “horror natural”, pois não trata apenas de um conjunto de imagens que provocam o medo, mas sim de um fenômeno com regras e convenções próprias. Nesse sentido, é interessante notar como Ito transforma algo natural, como as espirais, em fonte de horror artístico.

Com suas imagens chocantes de corpos mutilados e retorcidos, Uzumaki provoca o terror – no sentido mais físico do termo – de modo visceral. Decerto, tais imagens ficarão gravadas na mente muito tempo depois da leitura. Contudo, ainda que Uzumaki seja, inegavelmente, um mangá de horror, sua profundidade vai além do gore e do choque visual. É, também, um horror psicológico que explora uma gama de questões sociais complexas, tais como a obsessão, a paranoia e a inevitabilidade da morte.

A estilização também evoca o simbolismo da espiral. À medida que a obsessão dos personagens aumenta, as imagens grotescas se tornam mais frequentes e intensas. E, conforme enlouquecem, tornam-se vítimas, sobretudo, de suas próprias mentes. Nesse sentido, a arte reflete a distorção da própria realidade dentro da narrativa. Temos, também, a relação entre a psique e o sobrenatural; isto é, a ideia de a obsessão e o medo são capazes de criar realidades alternativas horríficas.

O legado de Uzumaki

Desde sua publicação, a obra de Junji Ito tornou-se referência para inúmeros artistas em todo o mundo. Na combinação do grotesco com o horror psicológico, Uzumaki traz representações perturbadoras do medo, bem como reflexões acerca das complexidades da mente humana. Enquanto símbolos de obsessão e degeneração, suas espirais são metáfora poderosa dos horrores que habitam tanto o mundo físico quanto o mental. Essa obra-prima do horror é leitura obrigatória para os fãs do gênero.

Referências

Uzumaki: a espiral do horror (2020), de Junji Ito.

Dicionário de símbolos (2020), de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.

“Into the Spiral: A Conversation with Japanese Horror Maestro Junji Ito”, por Mira Bai Winsby (78 Magazine, 2006). Em: https://web.archive.org/web/20141022184345/http://www.78magazine.com/issues/03-01/arts/junji.shtml.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Uzumaki: a espiral do horror de Junji Ito, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/uzumaki-a-espiral-do-horror-de-junji-ito/. Acesso em: 30/03/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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