Já sabemos que em David Lynch há marcas do surrealismo, bem como do expressionismo e do realismo. Não só em seus filmes e séries, como Eraserhead (1977) e Twin Peaks (1990), mas nas artes plásticas. O cineasta norte-americano mergulhou ainda mais fundo nas relações com a pintura em meados dos anos 80; principalmente com Veludo Azul (1986), repleto de símbolos, elipses e alusões ao inconsciente. No próprio título do filme, conforme vamos descobrir, a cor azul evoca um simbolismo especial.
Um film noir contemporâneo
Da Inglaterra vitoriana, ambientação de O Homem Elefante (1980), Lynch volta ao coração dos Estados Unidos em seu quarto filme. A trama de Veludo Azul se passa em Lumberton, cidadezinha fictícia no cinturão da indústria madeireira americana. Em resumo: depois de achar uma orelha decepada num terreno baldio, Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan) se mete numa jornada pelos segredos sombrios do lugar. Mas, como acontece em vários filmes de Lynch, o que move enredo é a viagem interior desse rapaz, isto é, pelo próprio inconsciente. Assim como a exploração do desconhecido.
Há nessa história alguns toques de surrealismo, pois ela é resultado da mistura do horror com os filmes noir e de investigação hollywoodianos. Quando dois gêneros se misturam em um filme, cada um vem com suas próprias convenções. Com efeito, Veludo Azul traz sons do horror, tom de mistério, o acaso, o amor louco e a mulher como objeto de desejo (incompreendido). Mas, feito uma cebola, o cinema de David Lynch tem várias camadas. Em outras palavras, há várias dimensões e interpretações.
O mistério da cor azul
Em Veludo Azul, Lynch mexe com o duplo, ou seja, o normal e o monstruoso, a fachada e o que há por trás dela. Conforme a história avança, esses duplos se mesclam cada vez mais. Então, o choque de dois mundos cria imagens chocantes, porém inesquecíveis. O filme também evoca certa nostalgia pelo passado, emoção que o título do filme inegavelmente traz como metáfora. Mas por que azul?
Se, para Lynch, o “veludo azul” é o sonho ou o desejo por trás do mistério, vale lembrar o significado dessa cor. Afinal, o azul sempre foi símbolo de transcendência, como é o caso da flor azul do romantismo. As necrópoles egípcias tinham paredes dessa cor, tanto quanto a abóbada celeste na Mesopotâmia. Isso porque o azul-celeste é o limiar que separa o homem do Além. O azul é, de todas as cores, a mais profunda e fria. É imaterial em si mesma, e de valor metafísico – ou seja, está além da física, que a transcende. Portanto, é o caminho rumo ao infinito, onde o real se torna imaginação.
Hopper e suas cores no cinema
Nas cenas vibrantes que abrem Veludo Azul, Lumberton é um tipo de paraíso provinciano. As imagens seguintes focam em áreas ermas da cidadezinha, isto é, lanchonetes vazias, postos de gasolina, ruas amplas. Estas são imagens típicas dos quadros de Edward Hopper, outro pintor que Lynch admira.
Da tradição realista do preciosismo, Hopper lançou um olhar crítico sobre o cotidiano das cidades americanas, que materializou com sua técnica perfeita de cores frias. De acordo com Kandinsky, a profundidade do azul tem “gravidade solene” e “atrai o homem para o infinito” – o que se nota na obra desse ídolo de Lynch. Das janelas e telhados dos velhos prédios de Nova York, Hopper então criou cenas e mistérios em miniatura, que a maioria das pessoas sequer notaria.
Hopper também influenciou o posterior Coração Selvagem (1990), de Lynch. Mas, se as imagens e cores das cidadezinhas americanas nos levam principalmente à obra desse pintor, Lynch não chegou a recriar seus quadros. Ao contrário do que fez Wim Wenders em O fim da violência (1997), por exemplo, que mostra um cenário similar ao do icônico Nighthawks (1942).
Em Veludo Azul – e na obra de Lynch como um todo – o que há de mais sombrio nos lugares tipicamente americanos sempre vem à tona. Ou seja, tudo o que jaz sob a máscara de hipocrisia, conservadorismo e falso moralismo dos “cidadãos de bem” inevitavelmente será revelado. Desse modo, o cineasta faz uma crítica um tanto quanto ácida aos valores tradicionais da sociedade.
Referências
Dicionário de símbolos (2020), de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.
“Retrato de cineasta pintando en el estudio: relaciones entre pintura y cine en David Lynch: The Art Life (2016)“, de Ángel Justo Estebaranz (2018).
American Realism (2015), de Gerry Souter.
Masters of Cinema: David Lynch (2010), de Thierry Jousse.
Mythology, Madness, and Laughter: Subjectivity in German Idealism (2009), de Markus Gabriel e Slavoj Zizek.
O cinema limítrofe de David Lynch (Tese, PUC/SP, 2003), de Rogerio Ferraraz.
“Blue Velvet – a mixed genre film with horror film sound” (FilmSound.org), por Ken Dancynger.
Como citar este artigo? (ABNT)
REIS FILHO, L. Veludo Azul, mas por que azul?, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/veludo-azul-mas-por-que-azul/. Acesso em: 29/10/2024.